São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 1996
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A inspiradora estrela da manhã

LIVIO TRAGTENBERG
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ângela Maria é o tipo da cantora que se transforma em referência. Por mais que as diferentes ondas se sucedam e as modas mudem, ela permanece com seu estilo próprio, sinalizando intermitentemente com um farol na baía.
Mas isso não significa que sua arte não se desenvolva e se modifique ao longo dos anos. Com uma carreira iniciada nos microfones da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, nos anos 50, e após uma das maiores discografias da música popular brasileira (talvez só comparável a Nelson Gonçalves e Silvio Caldas), Ângela Maria dá provas de que uma intérprete pode, além de atravessar modismos e correntes, variar muito sua palheta colorística sem que perca a sua unidade estilística.
Nesse sentido ela sempre foi fiel ao timbre marcadamente dramática de sua voz, que se revela em diferentes matizes, ora como vozeirão de peito apropriado a um bolero ou a um samba de dor de cotovelo, ora em tom extremamente intimista, como na primeira gravação de "Gente Humilde", por exemplo.
Ela é sem dúvida a última representante na ativa da MPB da era do rádio, de um universo de intérpretes como as irmãs Batista, Zezé Gonzaga, Marlene, Emilinha Borba e de compositores como Ary Barroso, Herivelto Martins, entre tantos outros; e uma verdadeira ponte entre esse mundo musical e as novas (e não tão novas) cantoras.
Ângela Maria domina a técnica de cantar ao microfone de forma própria. Ao contrário de uma Leny Andrade, que modula a intensidade da voz com um jogo de aproximação e distanciamento do microfone, ela produz essas alternâncias na própria emissão vocal, o que reforça ainda mais a dramaticidade de suas interpretações.
Essa fidelidade às próprias características é também um fator determinante da perenidade e -mais importante- da atualidade de sua voz no contexto da música popular brasileira.
Ainda que às vezes seu repertório apresente uma certa desigualdade, Ângela Maria é extremamente versátil na combinação de sua voz com a de outros intérpretes, como se ouve nas gravações com Cauby Peixoto e no seu mais recente CD "Amigos", no qual contracena com cantores tão diferentes como Roberto Carlos e Ney Matogrosso, que é sem dúvida o seu clone masculino.
A dignidade de uma voz e de uma carreira tão longa num país dominado pelo novidadeiro já é por si o testemunho de seu inestimável valor artístico, que felizmente algumas novas cantoras têm percebido ao buscá-la como fonte de inspiração musical.

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