São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 1996
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A voz cor-de-rosa

MAURO RASI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando ela surgiu, foi um estouro. Desde a semana de 22 não se via nada tão moderno: a nossa Shirley Temple! A Olivia Newton-John de Taubaté! Fez bem em parar. Senão, teria virado uma Baby Jane. Ou "amadurecido" e mudado de repertório: hoje estaria cantando Chico e Caetano no programa da Hebe. Ou brilhando no "Gente Que Brilha". Aliás, esse programa devia se chamar "Nem Tudo Que Reluz É Ouro...". Foi uma versão "patricinha" de "Juventude Transviada", mas da Nathalie Wood do filme do Nicholas Ray ela só tinha a meia soquete. Só!
Celly não corria riscos: não possuía múltiplos parceiros; aliás, como ela mesma confessa no clássico "Não Tenho Namorado", sofria o mesmo drama da Xuxa, que, entre outros obstáculos, não arruma namorado porque trabalha muito. Já com Celly, o problema era bem outro: "Oi, oi, oi, sempre a estudar, sem um amor, que venha comigo sonhar". Os pais não precisavam se preocupar. O jovem, nessa época, se impunha limites: Celly só deixava pôr nas coxas -se é que deixava- no máximo pegar nos peitinhos... Passar disso, só com véu e grinalda. Foi a filha que todo pai queria ter. Pelo menos na época, que até os pais mudaram, não apenas o rock.
Esse então mudou muito de Celly a Renato Russo. E como! Quem pode imaginar Celly cantando para as vítimas de Bangladesh ou da Aids? Ou mesmo pela preservação dos nossos índios, como o Sting... Os tamoios de Taubaté -se é que existiram tamoios em Taubaté- foram dizimados, e Celly não elevou a voz. Continuou cantando: "Nas dobrinhas de uma concha, nosso amor eu escondia, e a conchinha cor-de-rosa, meus segredinhos sabia...".
Era uma época ingênua, se é que existem épocas ingênuas. Celly foi o "début" dos nossos "sixties": Jânio renunciou, o general Mourão desceu de Minas com suas tropas, Jango caiu, Brizola fugiu disfarçado de mulher, enquanto Celly tomava banho de lua. Apesar disso, com exceção de algumas bichas e alguns raros arqueólogos, pouca gente se lembra dela. Não só dela como do Jango, do general Mourão etc. O que é comum a todas as épocas é a falta de memória. Já a dita ingenuidade, é só aparente. Debaixo dos panos, ou dentro do armário, para ser mais "up to date" -desculpe Celly- a maturidade se revela seja em que época for. Daí descobre-se que Doris Day teve uma vida de cão, que Joan Crawford era uma bruxa, que Rock Hudson jogava água fora da bacia, que Xuxa... cala-te boca!
Mas o que era Celly? Uma retardada? Uma avançada? E nós, os "jovens" da época, o que éramos: retardados?! Moderninhos? Vocês decidem! Um de seus hits sempre me intrigou. Ela cantava: "Quando eu andar, quero andar com o Billy..." -epa! que negócio é esse de "quando eu andar?"; trata-se de uma paralítica?- e continua: "Que frases lindas vou escutar...". Que será que esse playboyzinho vai dizer pra ela? Esse tal de Billy deve ser igual ao Hugh Grant: tem carinha de anjo, diz coisas lindas pra mulher e depois vai pegar vagabunda na rua pra fazer boquete!
É uma música para pedófilos. Mas, dependendo do humor da gente, também pode despertar instintos assassinos. O que Jason, o de "Sexta-feira 13", faria se deparasse, cara a cara, com Celly cantando "um sapatinho eu vou, com laço cor-de-rosa enfeitar"... Teria calado Celly para sempre? Ou teria o seu duro coração amolecido, e ele se transformado num novo homem -no sábado!- nos poupando assim daquela série infindável de sextas-feiras. O único porém é que não seríamos poupados de Celly. "Mas nada é perfeito", já dizia Joe E. Brown em "Quanto Mais Quente, Melhor!".
Hoje a gente ouve Celly pra rir. Rir de "para presidente dos brotinhos, tem que ser bonito e sedutor, senão vai ser um simples vereador"... Rir de "Flamengo Rock" -um de seus "musts" mais idiotas, no qual ela canta que há muito tempo sonhava visitar a "nobre e ardente" Espanha (sic), "terra do passo doble e de grandes toureiros...". Só que, quando ela chegou, ficou escandalizada: não viu ninguém dançar nem passo doble nem bolero. Só o tal de... flamengo rock!!! Rir de todo o seu seletíssimo repertório. Mas, atenção: rir de Celly é rir de si mesmo. Pior para nós. Nesse momento, ela deve estar se preparando para receber a visita do bom velhinho, que vem lá do Pólo Norte ou Sul, não sei bem ao certo, no seu trenó puxado por várias renas.
Celly -que certamente estará toda de rosa, com lacinho e tudo- assim como toda a Taubaté ficarão brancas como a neve. E Celly rirá por último.

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