São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 1996
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A normalista que virou rainha

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Até os anos 30, o único autor baiano que fazia sucesso nacional -e já internacional- era um mineiro de Ubá chamado Ary Evangelista Resende Barroso. Logo depois veio o baiano de mala e cuia chamado Dorival Caymmi e durante anos os dois levaram a Bahia musical nas costas. Ary era a macrobahia. Caymmi a microbahia. Um cantava a gesta. O outro o gesto.
Até que, aí pelo início dos anos 60, vieram os baianos para valer. O sul ficava espantado: depois de Bethânia, com sua imponência de rainha de Sabá, surgia uma mocinha que parecia uma normalista da rua Mariz e Barros. Vestida de azul e branco, seria uma futura professorinha de bairro. Chamava-se Maria da Graça, nome de cantora de fado.
Só que era Gal -e tinha larga estrada pela frente. Sua voz era mais do que um instrumento. Era uma entidade que boiava no ar das tardes, quando os rádios tocavam "Que Pena!", de Jorge ainda Ben, em duo com Caetano Veloso: "Mas eu não vou chorar, eu vou é cantar...".
Nunca, antes dela, aparecera uma cantora tão afinada, tão exata no timbre. Sim, havia Dalva de Oliveira, muito estridente nos agudos, insistindo em vocalizações que ela copiava de Gilda de Abreu e de alguns sopranos de igreja. Sem falar no repertório.
Durante algum tempo, Gal e Bethânia eram os dois pólos que norteavam a música popular brasileira. Elis Regina não servia de referência, era um caso à parte tanto no bem como no mal. Gal trazia a regularidade de sua afinação. E, quando sentiu que a hora chegara, absorveu uma assombrosa capacidade corporal, raríssima em cantoras de seu porte. A voz tornou-se show. Enquanto não foi estragada por diretores equivocados, que a obrigaram a ser mais carne do que voz, Gal foi responsável pelos melhores solos nos palcos brasileiros.
Curiosamente, talvez de tanto lembrar Dalva de Oliveira em alguns momentos, ela deixou a peteca de seu repertório cair. Mesmo tentando os clássicos, como Ary Barroso, Gal parecia estacionada, conformada com o lugar que obtivera no panteão de nossas cantoras. Começou a cantar pelo nariz, gravou muita sucata, vez ou outra brilhava fulgurantemente, mesmo quando apelava para sucessos de Dalva, como em "Olhos Verdes" -obra-prima de um esquecido, mas genial, Vicente Paiva.
Não importa. Gal traçou no cenário musical de nosso tempo uma trajetória mais do que brilhante. Com o tempo, dominou todos os truques da arte de cantar. Mas há quem a prefira como antigamente, vestida metaforicamente de azul e branco, como a normalista cantada por Nelson Gonçalves, dizendo que não vai chorar, que vai é cantar.

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