São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 1996
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Sons de céus e abismos

JOSÉ MIGUEL WISNIK
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há vozes que têm uma nitidez de cristal, flautas mágicas que nos fazem sentir a forma da onda em estado puro. A pureza da voz de Nana Caymmi, no entanto, é de outra natureza -mais pincelada da alma do que desenho linear da melodia. Há momentos em que ela parece a cauda de um cometa cheio de harmônicos, rastro brilhante de partículas suspensas carregando em si um turbilhão inacreditável de microtons, que risca o céu da solidão.
Quando Nana canta o "Último Desejo", de Noel, por exemplo na frase "se você me quer ou não": esse "não", que dura uma eternidade, vai perdendo e ao mesmo tempo ganhando intensidade, enquanto sofre mutações timbrísticas sutilíssimas que parecem conseguir contar uma história de amor indizível e inteira em uma única sílaba. O efeito parece o de uma "folha seca", à maneira mesma do futebol: a nota vem forte e subitamente "perde peso". Mas muitas vezes cai em volume enquanto sobe em altura, porque é cheia de céus e abismos.
Posso tentar comparar também com a onda do mar de Caymmi: a voz de Nana não é um rio, é a foz onde a água doce se encontra com a salgada, onde o "ronco das ondas" vira subitamente espuma e onde o mar se funde com esses veios frescos que se comunicam com o interior secreto do amor, do Brasil. A alma solitária abraça o mundo (Ronaldo Bastos me disse que a chama pelo apelido, que me parece simbolicamente correto, de "Mamãe").
Estou pensando no "Beijo Partido", de Toninho Horta, em "Vire Essa Folha do Livro", de Vinícius de Moraes (onde acontece tudo que eu tentei descrever aqui e mais alguma coisa), no "E Eu sem Maria", que está no songbook de Dorival Caymmi, no "A Noite do Meu Bem", de Dolores Duran, na maravilhosa "Segue o Teu Destino", que Sueli Costa fez para um poema de Ricardo Reis/Fernando Pessoa, e onde Nana nos faz divinos quando canta finalmente: "Os deuses são deuses/ porque não se pensam".

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