São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 1996
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ITR, um novo estatuto da terra

RAUL JUNGMANN

Com a aprovação do rito sumário e do novo ITR, o governo Fernando Henrique Cardoso e o Congresso Nacional deram provas de que buscam atender os anseios da sociedade e escolher o melhor caminho. Sabem fazer o melhor pelo Brasil, mudando uma página da história para que ela possa ser reescrita com mais justiça.
Temos hoje, ouso dizer, não apenas um novo ITR, mas um Estatuto da Terra atualizado. Demos um passo histórico. E esse passo foi dado dentro das regras do regime democrático, dentro do respeito à lei. Encontramos uma saída pacífica para o drama dos trabalhadores sem terra.
É uma nova face do Brasil: a face do espaço democrático, no qual governo e povo se unem para a solução desse problema secular que é a democratização da terra. Só não vê isso quem não quer ver, quem não acredita que o país mudou e continuará mudando.
Hoje, com o apoio dos mais representativos setores da sociedade, da igreja, da Contag, dos sindicatos, do empresariado rural moderno -enfim, com o apoio da nação como um todo-, podemos mostrar o quanto estavam enganados os que sempre afirmaram estar bloqueado o caminho da reforma agrária pela via pacífica, democrática e legal.
O novo ITR é o primeiro a reconhecer os direitos ambientais da terra. E é importante ressaltar que foi feito com a participação decisiva e capaz não só dos técnicos do Incra, mas também dos técnicos da Receita Federal, à frente o seu secretário Everardo Maciel, e dos ambientalistas do ministro Gustavo Krause.
Tudo isso mostra claramente o que já afirmamos: existem hoje uma vontade e uma coesão que viabilizaram as mudanças que estamos vivendo.
Outros fatores -que já assinalei em outras ocasiões- também contribuíram decisivamente para que a questão fundiária brasileira principiasse a mudar.
Primeiro, o fim da polaridade ideológica, que rompeu o amálgama tradicional que soldava os setores de futuro -produtivos, empresariais, competentes e modernos, que o país tem em grande número e alta conta- aos setores do atraso. Ao toque de reunir do confronto ideológico, esses setores historicamente se somavam.
Segundo, a nova dinâmica econômica -que leva a agricultura a priorizar o crédito, a assistência técnica, os insumos, a produtividade- reduziu a voraz fome de terras característica de ciclos como o do açúcar e o do café, e isso também contribuiu para desfazer essa aliança entre os setores especulativos e os voltados para modernidade.
Terceiro, o Plano Real, que, a meu ver, deu o primeiro golpe de morte na especulação fundiária. A estabilização da moeda trouxe a necessária segurança para que o capital, não só o investido em terras, pudesse voltar ao seu leito natural, que é a produção. Isso se verifica, obviamente, em decorrência da queda abrupta do preço da terra, que também barateou o preço da produção.
Em quarto lugar, é imprescindível ressaltar que temos hoje uma opinião pública francamente favorável à reforma agrária.
Em quinto, não menos importante, a organização dos trabalhadores, em termos nacionais: organizados, eles estão dispostos a lutar, no bojo dos movimentos sociais -no caso específico, o da terra-, pelos seus direitos, pela dignidade e pela vida produtiva.
Todos esses aspectos, a meu ver, são decisivos para que possamos estender ao campo aquilo que já foi alcançado nas cidades: a condição de proceder, politicamente, o controle social e trazer para a esfera pública a propriedade e as lutas pela terra.
Progressivamente, a exemplo do que acontece na região do ABC paulista, os conflitos tenderão a ser mediados pela Justiça. As oposições e as divergências, a ser solucionadas por métodos democráticos.
E, mais importante ainda, tudo isso converge no sentido de uma pactação. Em que pesem as dificuldades enfrentadas nas zonas de fronteira agrícola, hoje é possível antever o respeito ao princípio da alteridade, que é o direito que fundamenta a esfera política democrática: o direito de divergir sem ser suprimido. Respeitado esse direito, reduz-se a violência.
É importantíssimo que se reconheça o papel-chave do Congresso Nacional. Este, no espaço de 30 dias, nos deu o rito sumário -fundamental para acelerar o Programa Nacional de Reforma Agrária-, a participação do Ministério Público em todas as etapas da reforma -contribuindo para a diminuição da violência no campo- e o novo ITR -que representa o desestímulo à concentração fundiária, a redução das tensões e a canalização de recursos para os desafios maiores do programa agrário, que são a sua qualidade e a sua sustentabilidade.
No entanto, existe ainda, embora sem guarida na opinião pública, quem se utilize de métodos que apelam para a violência ou a quebra da ordem, nesse instante em que o Executivo propõe, o Congresso se move e retoma-se a história da democratização da terra no Brasil.
Mas o que interessa é que é chegado o momento de iniciar, sem mais delongas, a tarefa de fiscalização do novo imposto. Para isso, vamos ter, já no próximo ano, um grande instrumento, um novo desafio, que será o de fazer um novo recadastramento de terras no país, em conjunto com os Estados, a Funai, o Ibama, o Exército e a Secretaria de Patrimônio da União, usando-se tecnologia de ponta. A partir daí, poderemos, com maior fidedignidade, observar os princípios do novo ITR.

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