São Paulo, segunda-feira, 23 de dezembro de 1996
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Razões para parar de fazer sentido

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

Sempre se fazem balanços em fim de ano. Tenho uma amiga que, nas reuniões no exílio, brincava conosco introduzindo esta pergunta na agenda das reuniões: de onde viemos, quem somos, para onde vamos?
Estava exatamente pensando num balanço quando cheguei à notícia sobre a tecnologia do anti-sentido. Ela nasceu do estudo do DNA, a hélice dupla que forma os gens.
Composto de dois fios, o DNA tem a molécula plena de informações genéticas que acaba se transformando em proteína. Mas o seu duplo é uma espécie de espelho e carrega uma mensagem invertida, que a célula não usa.
A tecnologia do anti-sentido consiste exatamente na produção dessas réplicas que, colocadas diante das células que carregam o mensageiro cheio de informação, conseguem bloquear seu crescimento.
Por meio desse mecanismo, tenta-se de quase tudo na engenharia genética: retardar o amadurecimento das frutas, desprogramar o mosquito da dengue e, num lance mais ousado, neutralizar o vírus da Aids.
Isso não é ainda uma tecnologia consagrada e deve se deparar com um enorme obstáculo: a capacidade de mutação de alguns vírus, sempre se transformando para sobreviver às armadilhas que a ciência e a própria natureza lhes preparam.
Meu balanço foi revolucionado por essas moléculas espelhares que carregam uma espécie de mensagem invertida, inútil para o desenvolvimento das células. E se essa estrutura molecular fosse válida para o corpo inteiro de uma pessoa, para um país?
Será que cada um de nós carrega um outro espelhado, cheio de informações inúteis, dispersivas, destrutivas e estéreis? Fernando Pessoa tem um verso em que diz que sobrevive a si mesmo como um fósforo frio. Seria essa a descrição do momento em que nos tornamos corpos anti-sentido?
Uma tecnologia muito nova para que se possa especular abertamente sobre ela. Mas será que, a partir da molécula, podemos pensar um Brasil de mentira, um país espelhado, carregando mensagens invertidas que nada dizem?
Bastaria olhar para trás e localizar o que se transformou em proteína, o que deu em nada, o que foi apenas uma massa de informações totalmente inúteis para as células.
Quando estudava antropologia, aprendemos como é perigoso transplantar uma determinada realidade biológica para o campo social. Quase sempre acaba numa teoria conformista, tentando mascarar as injustiças cotidianas.
Nada impede entretanto saltar da biologia para a vida sentimental. E esperar alguma coisa. Quem sabe o futuro vai me ensinar a não mais perder canetas, chaves e óculos?
Bastaria descobrir precisamente a estrutura genética que favorece essas perdas e produzir as moléculas anti-sentido que as inibem. Reconheço que seria mais simples amarrar as canetas num barbante em forma de colar, mantê-las presas ao pescoço.
Mas os defeitos de caráter? A preguiça, a cólera, a luxúria, vamos corrigi-los na base das células anti-sentido? Está aberto um caminho que levará anos para ser trilhado.
No momento é preciso responder apenas a isto: 1996 existiu mesmo ou foi apenas um ano com informações invertidas, um nonsense que se espalhou pela dobra dos dias e meses, impedindo que os mensageiros genéticos chegassem ao seu destino e replicassem as células dos acontecimentos?
Existimos mesmo ao longo dos 365 dias ou fomos soterrados pelas enganadoras informações que apenas nos mantiveram vivos, mas não deixaram crescer, transformar sinais em proteínas, notícias moleculares em paixão, ódio e esperança?
Nosso anticorpo caminha num antipaís, globalizado num antiuniverso, e as cinzas do nosso antiamor derramam secreções orgânicas, falsas lágrimas no travesseiro de plumas.
Vivemos com um duplo, a própria ciência comprova, um duplo na íntima invisibilidade celular, um duplo no trabalho, no romance, na política nacional, um duplo que subverte as bases de nosso código.
É tão próximo que não podemos nos livrar dele, somos obrigados a carregá-los nos dois lados, na frente e atrás, até que, um dia, nos vença de vez e imponha sua indecifrável gramática.
Quando foi que nós deixamos de fazer sentido? Se pudesse pelo menos definir isso, acabaria chegando ao autor do texto e ao país a que se refere. Sem esses dados, só me resta desejar um feliz ano novo para nós e para o abismo que arrastamos conosco.

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