São Paulo, segunda-feira, 23 de dezembro de 1996 |
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Caetano é acondicionado em caixa
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
Inclui quase todos -não todos, como se afirma- os trabalhos que o artista baiano concebeu desde sua estréia (em 1967, com "Domingo", parceria com Gal Costa), enriquecidos de livro de 252 páginas com fotos e todas as letras. O que se vê, daí em diante, são pedaços de história da MPB -e do Brasil. Um salto qualitativo separa a bossa nova à João Gilberto de "Domingo" de seus sucessores, "Caetano Veloso" e o disco coletivo "Tropicália ou Panis et Circencis", ambos de 68, ano do advento do movimento tropicalista. Nada mais seria como antes: o samba se misturou com o rock, a MPB de raiz com cancioneiros alienígenas, o atrasado com o avançado e assim por diante. Inaugurava-se, com seus poemas, fase de capitulação da narratividade frente ao impressionismo de letras cada vez mais pessoais. Depois de Caetano, a impressão do artista sobre si ou sobre o mundo -e não as histórias do mundo em si- viria a tomar o foco de cena na canção popular do Brasil. Não por acaso, "e eu, e eu, e eu, e eu, e eu..." se tornaria um dos versos-símbolo de Caetano. Veio aí seu "álbum branco" (69), véspera do exílio imposto pelo regime militar que instaurara o Ato Institucional nº 5. Era já a implosão do tropicalismo em vórtices de experimentalismo e anarquismo sonora/conceitual. "Araçá Azul" (73) levaria o experimentalismo ao insuportável, passando à posteridade como equivalente a um disco ruim do maldito Walter Franco. Mas antes houve "Transa" (72), manifesto pós-tropicalista e o disco que talvez melhor represente a obra de Caetano, que une o então nascente reggae, pop anglo-saxônico, bossa e Gregório de Mattos. Por essas tantas, ainda contaminado dos eflúvios tropicalistas, Caetano se mostrava afoito por conceber manifestos a cada ano. Em 75, foi a vez dos discos-irmãos "Jóia" e "Qualquer Coisa", com capas e conceitos roubado dos ídolos Beatles. Em "Jóia", ruídos e onomatopéias intensificam o sepultamento da narrativa, no que se assemelha a um bom disco de Walter Franco; em "Qualquer Coisa", versões dos Beatles amaciam clássicos como "Jorge de Capadócia" (de Jorge Ben) e a enigmática faixa-título. Não havia mais discurso. "Bicho" (77) veio mostrar que o não-discurso se fantasiava de discurso. "Odara" virou emblema do não-vamos-fazer-nada de uma geração neo-hippie perdida na imobilidade política pós-AI-5 e em viagens maconheiras. Aí mesmo começaram a surgir os hits de apelo radiofônico -"Tigresa", "Leãozinho"-, que não ecoaram em "Muitos Carnavais", do mesmo ano, todo dedicado a temas carnavalescos. "Muito" (78) trouxe novos hinos neo-hippies e a música pela qual Caetano deve ser lembrado, "Sampa". Caetano já namorava o comercialismo, e "Menino do Rio", de "Cinema Transcendental" (79), sedimentou a vertente. Mas o disco inclui algumas de suas melhores composições. Eram chegados os 80, fase nebulosa da MPB como um todo e de Caetano em particular. "Outras Palavras" (81), "Cores, Nomes" (82) e "Uns" (83) são pura diluição, em radiofonias como "Lua e Estrela" (81), "Queixa" (82), "Você É Linda" (83). Aí ele virou new wave. "Velô" (84) soma letras que tentam resumir o mundo -"Podres Poderes", "Língua" (com Elza Soares)- e arranjos pop de esquina -"Shy Moon" (com Ritchie). O ano de 86 foi revisionista, com disco ao vivo ("Totalmente Demais") e releituras para o mercado norte-americano ("Caetano Veloso"). O compositor voltou em 87, com "Caetano" e novas avocações ("Vamo Comer"). O binômio discursividade/antinarratividade conheceria novo auge em seu melhor disco nos 80, "Estrangeiro" (89). "Circuladô" (90) é já diluição do neo-neo-antropofagismo do anterior. O ponto alto dos 90 -até o momento, já que o posterior "Fina Estampa" opera à náusea por um rebuscamento artificioso- viria em "Tropicália 2". O disco aponta rumos ("Avisa Lá", do Olodum) e sugere alternativas para os descaminhos da música da terra natal. A mensagem é: um quarto de século depois, Caetano ainda guarda toda a gana de ser o condutor-mor do destino da MPB, o que quase configura a criação de uma seita. Não por acaso, o pastor é um dos mais completos e impositivos artistas que o Brasil já conheceu. Texto Anterior: Razões para parar de fazer sentido Próximo Texto: Discografia Índice |
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