São Paulo, quarta-feira, 25 de dezembro de 1996
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Cana-de- açúcar e crack

AURO DANNY LESCHER

Gozado... Há semanas deu no "Jornal Nacional" que o crack havia chegado ao campo. As cenas de adolescentes cortadores de cana-de-açúcar no interior de São Paulo "pipando" crack não teve repercussão nos jornais ou TVs nos dias ou semanas seguintes, só na conversa miúda com vizinhos ou amigos. Dentre as reações à reportagem, eram comuns indignação e surpresa. Será expressão de nossa cruel contemporaneidade ou mero artefato de mídia?
Quando a fome aperta, sofrem corpo e alma, e a cidade fica como alternativa de sobrevivência, famílias inteiras ou fragmentos dela chegam e habitam como podem a sua periferia, essa espécie de purgatório entre o campo e a cidade.
De alguma forma, os jovens que "pipam" crack nos becos da periferia são contemporâneos e contíguos aos jovens que cortam cana nos canaviais, tonalidades bem próximas de uma mesma escravidão, momentos diferentes de um mesmo processo.
O crack pode aumentar a lucratividade de alguns usineiros, além da dos habituais traficantes, mas é sobretudo um grito estridente. Ofusca de tanta potência, paralisa alguns, instiga outros, que, ébrios de pensamentos prematuros, chegam a falar em internação compulsória dos jovens "viciados", dos canaviais do campo ou das ruas da cidade.
Dos riscos, o mais soberbo em arbitrariedade e truculência é o de medicalizarmos uma questão social. Se nos referirmos aos jovens em situação de sub-humanidade, aprisionados no crack, como sendo toxicômanos, correremos o risco de interná-los -compulsoriamente- em dispositivos institucionais de altíssimos muros e voraz vigilância para tratar quem não deseja tratamento, privar de liberdade quem sofre com o crack e com as limitações que a própria miséria impõe, além de fracassar obviamente nos objetivos de tão obtusa intervenção.
E tudo se passa como se não existissem iniciativas já consagradas pela mídia e tantas outras ainda sem visibilidade, que são, evidentemente, alternativas muito mais eficazes e justas no resgate de dignidade e leveza, tão fundamentais à criança e ao adolescente. Das "socioeducativas" às ético-estéticas.
A estridência desse grito é o timbre de uma reivindicação e exige reflexão e compromisso de diversos setores da sociedade, guiados, entretanto, pelo espírito da liberdade e democracia, ética e solidariedade. Que a urgência das coisas não justifique aberrações da cidadania, no campo ou na cidade.

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