São Paulo, quarta-feira, 25 de dezembro de 1996
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Cidade chega à maturidade da decoração natalina

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Não faz muito tempo, a prefeitura tinha o hábito de pintar de branco o tronco das árvores. Dizia-se que era para evitar bichos, carunchos, pragas, pulgões. A iniciativa era aceita pela população. Eu não me conformava; as árvores pareciam estar usando as meias brancas do meu próprio uniforme escolar, embora já fossem adultas.
Havia também um intuito civilizatório, disciplinador nesse costume: se permitimos às árvores, essas remanescentes da selva, que sobrevivam na cidade, terão de calçar-se ao menos; o pavimento das ruas, o caiado dos troncos, eram como que o pudor da cidade frente a uma natureza explícita demais.
Há coisas que melhoram sem a gente perceber. Não encontro mais em São Paulo essas árvores de ceroulas. A prefeitura tinha, de qualquer modo, mais o que fazer. Imagino o que aconteceu com o departamento encarregado de caiar troncos de árvores...
É típico das cidades subdesenvolvidas o horror à natureza. A grama, as árvores, ainda são inimigos. Não há nenhum romantismo na dona-de-casa de uma cidadezinha do interior. Podendo, ela vai cimentar o quintal; odeia "o verde", situa-se num estágio mais heróico da civilização humana -que, como nos velhos filmes de faroeste, há de ser feito em preto-e-branco, asfalto e cal.
Passeando à noite em São Paulo, vejo que as decorações natalinas estão mais intensas do que nunca. O que era grande novidade há alguns anos tornou-se banal. Refiro-me à idéia de usar luzinhas brancas para cobrir o tronco das árvores. Fica bonito; dá uma idéia de Nova York, de Paris, nas ruas dos Jardins.
Antigamente, as árvores eram caiadas de dia e, no Natal, de noite, ganhavam, se tinham sorte ou se se comportavam bem, umas lâmpadas coloridas. Lembro-me, quando criança, da avenida República do Líbano.
Gostava de passar ali de carro. Era uma das poucas ruas asfaltadas. A trepidação do paralelepípedo, que se não me engano existia até na Brigadeiro Luiz Antônio, cedia de repente a uma lisura, a um silêncio de motor em quarta, a uma pista noturna onde, de cada lado, à esquerda, à direita, apareciam (eu deslizava pelo plástico do banco de trás do carro) as luzes de Natal no jardim das mansões baixas, modernas, horizontais, dos milionários. Eu achava que todos eram milionários.
Os anos 60 foram uma época ruim para o paisagismo. Talvez para a arquitetura também; não sei. Mas, para o paisagismo, tenho certeza. Tornou-se moda abolir as flores, investir na "folhagem", em tudo que fosse palmeira, árvore de folha espetada, arbusto anguloso, cacto esparso e pedra, espaço aberto e grama, vencendo o que pudesse haver de misterioso, de desorganizado e cheio num jardim.
Era, talvez, o segundo estágio do subdesenvolvimento. Não se cimentava mais o terreno, mas tudo tinha de mostrar a presença da civilização. Contra as alturas das árvores, as colunas confusas e os entrelaces das plantas parasitas, investia-se no horizontal, no despojado, numa espécie de tropical "clean".
Mas a época do Natal, sendo contrária ao "clean" pelas mais variadas razões, conhecia uma infração à regra paisagística. Aqueles pobres bambus, aquelas palmeiras espetadas da República do Líbano se enfeitavam com as cores mais caipiras.
Caipiras, não; eram básicas, e hoje nos dariam uma impressão de pobreza. Lâmpadas meio grandes, como frutas improváveis, cobertas de alguma espécie de tinta fosca, faziam um ingênuo tique-taque de azul, vermelho, amarelo e verde. Não mais que isso. O bastante para encantar a criança que eu era. Toda criança é kitsch.
Corrijo-me novamente: as decorações daquela época não eram kitsch. Eram infantis, eram a infância da tecnologia natalina. As luzes coloridas que piscavam, num ritmo regular, mas num espaço assimétrico, não diferiam muito das cores de um sinal de trânsito.
No máximo, havia um azul, um roxo, uma variedade de laranja a nos dizer que toda aquela inutilidade elétrica serviria, talvez, como um semáforo secreto, em outras dimensões.
Serviria como semáforo para a corrida infinitamente complicada, minúscula, confusa, cheia de acidentes, batidas, derrapadas e grunhidos inaudíveis dos duendes, das renas, dos trenós de um Papai Noel em Liliput, que viriam prover, não sem imprevistos e fracassos, as encomendas insignificantes e importantíssimas das crianças. Cada criança é uma máquina de desejos; é a usina elétrica de onde vêm essas luzinhas de Natal.
Mas, com o progresso, tudo isso se disfarça. As lâmpadas coloridas estão acabando na cidade. Optou-se pelo branco, por lâmpadas muito menores que recobrem os troncos e os galhos das árvores. Acho mais bonito, agora que não sou criança.
O que me parece mais bonito, nas decorações atuais, não é a brancura ofuscante, populosa e rica a tomar conta das árvores comuns. É o fato de que, estabelecido o contorno dos galhos, podemos pressupor, na escuridão do resto, naquilo que não foi possível de iluminar, o volume das folhas, a massa de vida que espera, secretamente, o sol para se tornar visível.
Essas decorações de luzinhas claras nos galhos das árvores parecem com as cidades quando as vemos, de noite, do avião. No meio da brilhante festa, há lagos escuros: presumimos que correspondam a um morro, a um parque, ao mar. Não digo favelas, porque estas bem ou mal respondem, fracamente, com menos luzes, ao formigueiro feérico da cidade. Suas luzes menores são como um presépio. Deve haver gente nascendo lá; esses pobres se reproduzem demais.
Iluminadas nos Jardins, as árvores não deixam de mostrar o que não iluminam; há um negrume nas folhas, acima dos troncos. É o que me encanta, como se fosse uma ausência de Deus.

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