São Paulo, domingo, 29 de dezembro de 1996
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A longa distância entre aplauso e triunfo

JORGE COLI
ESPECIAL PARA A FOLHA

No começo do ano, houve o lançamento de "Il Guarany" em CD pela Sony, com Placido Domingo. No início de novembro, deu-se a abertura da temporada lírica de Washington, com a mesma produção da ópera que serviu de base para a gravação. Estes foram, sem a menor dúvida, os acontecimentos maiores que marcaram o centenário da morte de Carlos Gomes (1836-1896). Começaram antes, em 1994, fruto da iniciativa de Gian-Carlo del Monaco e de Placido Domingo.
Gian-Carlo, filho do lendário tenor Mario del Monaco -um dos grandes Perys da história-, é diretor do teatro de ópera de Bonn, na Alemanha. Ele propôs o papel a Domingo, que se entusiasmou. O cantor sucederia a uma lista de nomes muito ilustres que encarnaram o índio de Alencar: Tamagno, Zenatello, Fleta, Gigli, Thill e o próprio Del Monaco.
Esta série de artistas fenomenais conferiram ao protagonista uma espécie de genealogia prestigiosa. A ela acrescentaram-se dados mais importantes: a qualidade da música de Gomes, seu injusto esquecimento. Gomes foi o único compositor das Américas, no século 19, a criar uma obra de repercussão internacional. Ele teve o poder de injetar, nos fluxos culturais criados pelo romantismo europeu, temas e personagens originados de um universo imaginário próprio à América Latina. Tudo isso seduziu, sem dúvida, Placido Domingo na aventura da montagem alemã.
O grande tenor torna-se, depois, o diretor artístico do teatro de ópera de Washington. É "Il Guarany" que ele escolhe como ópera de abertura da atual temporada.
Domingo, por si só, apoiado em seu imenso prestígio, decidiu fazer reviver a ópera de Gomes. Nesta história, a participação brasileira -uma colaboração financeira parcial- veio a reboque. Muito coerente com as "celebrações" que tivemos aqui: raríssimas, pobres, escassas. Quantas óperas de Gomes foram encenadas no Rio, em São Paulo, em Campinas, a cidade natal? Zero. Alguma secretaria da cultura, algum ministério financiou gravações atuais de sua música -único meio de fazê-lo verdadeiramente conhecido? Não.
Ao contrário, Domingo investiu muito em Gomes. Ele arriscava-se, nas suas novas funções em Washington, ao apresentar uma obra desconhecida. "Il Guarany" poderia tornar-se por excelência a ópera das Américas. Para tanto, porém, seria preciso um triunfo. Na noite da estréia, 9 de novembro, a expectativa era grande. O espetáculo evidentemente não fracassou. Foi aplaudido calorosamente. Mas vai grande distância entre aplauso caloroso e triunfo.
O crítico do "Washington Post" foi cruel e evidentemente injusto: "Partitura de segunda mão"; "imagine-se Bellini sem melodias, Rossini sem energia, o jovem Verdi sem dinamismo -e cada ato parecerá mais longo que o anterior". Sem referências, desconhecendo a obra, o jornalista faz um artigo provocador. Outros serão mais equilibrados: o do "Washington Times", por exemplo.
É preciso considerar, entretanto, que a apresentação não era exatamente ideal. Nenhuma ópera, naquelas condições, conseguiria maior sucesso do que o "Guarany" obteve.
Primeiro, foi a questão das legendas. Hoje, para comodidade dos espectadores, quase todos os teatros de ópera projetam a tradução do texto cantado. Isso permite seguir a trama em detalhe, embora esvazie o conteúdo poético dos libretos, feitos nessa curiosa e fascinante "linguagem de ópera", arcaica e moderna a um tempo. Ora, "Il Guarany" contém inacreditáveis inverossimilhanças, já criticadas pelo próprio Alencar no seu tempo. Mas elas fazem parte de uma sensibilidade onírica, própria ao mundo da ópera, à qual é necessário aderir se quisermos percorrê-lo. Pois é bem evidente que a ópera é inverossímil: os índios de Gomes -como os faraós de Verdi e os chineses de Puccini- cantam em italiano. E os absurdos se transfiguram em emoção pela poesia dos textos e pela força da música.
"Il Guarany" não é mais absurdo que "Il Trovatore", "A Força do Destino" ou "O Anel de Nibelungo". Ele é apenas mais desconhecido. As legendas, prosaicas e "realistas", fizeram rir o público. O "Washington Post", mais uma vez, insistirá: "Existem talvez óperas mais bobas no repertório, mas eu não consigo pensar em nenhuma". É que o crítico descobria a obra ali mesmo, com o auxílio elementar das legendas.
Referi-me acima à sensibilidade onírica das óperas. Werner Herzog foi o responsável pela direção teatral. O nome parecia adequado: Herzog mesclara ópera e floresta equatorial em seu "Fitzcarraldo", e essa mistura faz parte de suas obsessões. Ele conduz também seus personagens a evoluírem num estado segundo, dentro de uma dimensão de sono hipnótico: foi assim que inventou um "Lohengrin" propriamente mágico para o Festival de Bayreuth. Seu maravilhoso "Sonho de uma Noite de Verão", apresentado no Rio de Janeiro, associava vegetação luxuriante e contínua fantasia.
Por desventura, Herzog pareceu não investir tanto em "Il Guarany". O cenário -sem dúvida interessante- repetia-se interminavelmente, com pequenas variações. Ora, a obra de Gomes -com seu feitio de "Grand Opéra"- pede a variedade, o espetáculo que assombre, que espante, que deslumbre. Afora alguns achados pontuais mais ou menos interessantes, a direção de atores parecia inexistente. Os protagonistas e coro apresentavam-se, cantavam, iam embora, uns ao lado dos outros. Rossini dizia, sobre esse tipo convencional de disposição: "Enfileirados como alcachofras na quitanda".
Se o espetáculo cênico causou decepção, restava a música. Mas aqui também os senões despontaram.
O programa informava que a partitura empregada "baseava-se" naquela estabelecida por Barbato e que buscava reencontrar a música apresentada na estréia de 1870. Esse trabalho, ao meu conhecimento, ainda não foi publicado, mas a versão de Washington fez ouvir alguns acréscimos nada essenciais, algumas banalidades que soavam como supérfluos apêndices em relação à edição Ricordi.
Se não tinham grande interesse, essas alterações, em verdade, não perturbavam muito a qualidade da música. Não se pode dizer o mesmo de duas intervenções inteiramente absurdas e muito mais graves: a transferência da abertura para o início do quarto ato e o corte do balé.
Carlos Gomes compôs a abertura (que alguns chamam de "protofonia", utilizando um delirante vocábulo criado sob o Estado Novo por uma lexicografia doente de nacionalismo) depois da estréia da ópera: ela devia substituir o modesto prelúdio escrito originalmente para o primeiro ato.
Uma abertura, por definição, abre. A do "Guarany" é, sem sombra de dúvida, uma obra-prima. Ela está entre as mais admiráveis que a ópera italiana pôde criar. Ela enfeixa e concentra temas essenciais ligados a ação, ela prepara admiravelmente o ouvinte para o resto da obra. Possui um caráter entusiasta e inaugural. Colocá-la como prelúdio do quarto ato foi um inacreditável contra-senso: ali, ela freou a ação da ópera e perdeu o seu sentido de síntese.
A supressão do balé do terceiro ato foi outro disparate -muito estranho se considerarmos que a intenção era a de aproximar-se o mais possível do "original", tomando-se como parâmetro a estréia de 1870. Gomes definiu seu "Il Guarany" como "opera-ballo": ópera-bailado. Ele retoma o modelo francês e faz do balé do terceiro ato o ponto central à volta do qual se articula toda a sequência dos Aymorés. O balé equilibra musicalmente esse ato soberbo. Mais ainda, sua música é estimulante, viva, cheia de interesse, rica de ritmos que parecem guardar na lembrança certas composições brasileiras de Gomes: sua "Cayumba (Dança de Negros)", seu "Quilombo". Gomes introduz de maneira renovada o modelo do bailado francês no universo da ópera italiana, abrindo caminho para o balé de "Aida", para a "Dança das Horas" da "Gioconda".
Resta a interpretação. Recentemente, um espetáculo em Brasília e Paulínia demonstrou que "Il Guarany", bem cantado e tocado, permite à obra sair incólume de uma montagem ridícula e pífia, como a que foi concebida por Joãozinho Trinta. Não foi exatamente o que aconteceu em Washington.
Às qualidades excepcionais da voz de Domingo acrescenta-se uma impecável musicalidade, uma inteligência altíssima do texto musical. Sua cena da gruta do Selvagem é propriamente notável. Pouco importa se o papel seja talvez um pouco agudo para os seus meios atuais. Seu Pery já é definitivamente histórico.
O resto do elenco, no qual se destacou Verónica Vilarroel, era constituído por boas vozes de segunda zona. Cantores dignos, que teriam oferecido um "Guarany" bem mais vibrante, não fosse a direção de orquestra que se precipitava sem força e, pouco inspirada, sacrificava o fraseado. Sem lirismo e sem adrenalina, o "Guarany" de Washington ficou aquém do que poderia ser.
No número de novembro da revista francesa "Opéra International", o crítico Sergio Segalini faz uma notável análise comparada das duas gravações de "Il Guarany" -a brasileira, de 1959, e a recente, com a mesma distribuição e o mesmo regente de Washington. Segalini não se engana e prefere a mais antiga. Reconhece a elevada qualidade do elenco brasileiro -Patassini, Niza Tank, Paulo Fortes, muito superior, no seu conjunto, ao da versão atual. Ele assinala também a regência estilisticamente mais convincente de Belardi em relação a Neschling e utiliza uma expressão muito francesa para definir a velha gravação feita em São Paulo: "Verdadeiramente habitada". Como uma casa habitada ou vazia.
Dissemos no início, o "Guarany" de Washington, se não foi um fracasso, não chegou a um triunfo. Com tudo isto, é preciso notar, reconhecidamente, que, graças ao interesse de Placido Domingo e ao poder de seu renome, Carlos Gomes não é mais apenas um verbete modesto nas enciclopédias musicais: um público internacional descobre sua música e o situa melhor.
Outros apaixonados pelo músico de Campinas, sem a celebridade do grande tenor, têm-se, por outro lado, esforçado para tornar mais conhecida essa música tão bela. Assinalo a Amato Opera, cujo adorável pequeno teatro é bem conhecido por alguns "happy few", e que vem apresentando, já há alguns anos, em Nova York, óperas de Carlos Gomes: "Il Guarany", "Salvator Rosa", "Lo Schiavo". No início de novembro último, Amato, o dono dessa companhia fundada em 1947, montava uma deliciosa "Fosca". Estiveram na platéia, descobrindo a ópera de Gomes, James Levine e Licia Albanese. Shirley Verret telefonou ao teatro, lamentando muito não poder ir.
Afora a dedicação do maestro Luiz Aguiar, que deu assistência a essas montagens, a Amato Ópera nunca recebeu nenhum auxílio brasileiro.

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