São Paulo, domingo, 29 de dezembro de 1996
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O Império partido

BORIS FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A reunião em um só volume de dois trabalhos de José Murilo de Carvalho ("A Construção da Ordem" e "Teatro de Sombras"), publicados separadamente em 1980 e 1988, é muito justificável. Os textos abrangem dois momentos históricos sucessivos da história do Brasil do século 19: o que se abre imediatamente após a Independência, quando a tarefa da construção do Estado era decisiva, e o que se inicia com o regresso conservador de 1837, caracterizado pela formação dos partidos, pela questão abolicionista e pela crise aberta nos anos finais do Império.
Os livros converteram-se em clássicos de nossa historiografia, a tal ponto que qualquer pesquisador do período considerado tem hoje de tomá-los como referência. Uma resenha analítica deve também partir desse pressuposto.
Logo nas primeiras páginas, Murilo de Carvalho enfrenta uma questão central da historiografia brasileira: por que, ao contrário do que ocorreu no resto da América do Sul, o Brasil se manteve unificado e adotou a monarquia como regime político?
Sua resposta é de que isso se deve, essencialmente, à natureza da elite política, na época da Independência. A elite, em suas palavras, caracterizava-se pela homogeneidade, particularmente no que se refere à ideologia e ao treinamento. A ideologia estatista e conservadora resultava da formação jurídica comum em Coimbra, da experiência no funcionalismo público e do isolamento ideológico com relação às doutrinas revolucionárias. No seio da elite dirigente, os magistrados vieram a predominar, reforçando a visão dominante, em detrimento dos militares, cujo papel substancial, no Primeiro Reinado e na Regência, tendeu a declinar, só ressurgindo a partir da Guerra do Paraguai.
Como ocorre frequentemente com as teses inovadoras, o argumento vai, a meu ver, longe demais. Outros elementos explicativos são postos de lado, embora Murilo de Carvalho ressalve que está dando peso maior, mas não exclusivo, a um fator até aqui desprezado. De fato, não me parece que a homogeneidade da elite imperial no período decisivo da construção do Estado fosse tão acentuada como o autor afirma, vindo a ser antes a resultante de embates e de propostas políticas alternativas nos anos que vão da Independência ao regresso conservador. Sem dúvida, se os confrontos e as controvérsias ideológicas que giravam em torno da centralização/descentralização ou do equilíbrio entre a ordem e a liberdade não pressupunham a fragmentação territorial ou o republicanismo, estas opções estiveram presentes, com dramaticidade, em vários episódios até 1850, como é o caso da longa guerra civil travada pelos Farrapos.
Para se entender a manutenção da unidade e a adoção do regime monárquico, considero necessário dar relevância a dois outros fatores, pouco importando se eles encerram ou não explicações tradicionais. Um deles é o da vinda da família real para o Brasil, que deu visibilidade e prestígio à monarquia, fazendo com que, por vários anos, "a colônia se transformasse em metrópole".
A decisão dos Bragança pode ser vista como circunstancial, mas não como acidental, dada a importância que o Brasil adquirira a partir da exploração dos metais preciosos e da política pombalina. A corte portuguesa facilitou a transformação do poder, localizado no Rio de Janeiro, em um centro polarizador e viabilizou a Independência em condições relativamente tranquilas, com a passagem do mando de pai para filho, assegurando-se ainda a sobrevivência do regime monárquico.
O outro fator é de natureza sócio-econômica e vem sendo acentuado, como lembra Vilma Peres Costa ("A Espada de Dâmocles"), por autores como Hermes Lima, no passado, e Luis Felipe de Alencastro, nos dias de hoje. Quero me referir à tese da vinculação entre a unidade e a manutenção do sistema escravista. É aliás curioso que, na sua refutação das explicações de natureza social e econômica, Murilo de Carvalho simplesmente a ignore. Não vejo como se possa desconsiderar os nexos que aparentemente unem o esforço pela centralização e pela unidade à necessidade de sustentar como um bloco a persistência das relações de trabalho escravistas, cada vez mais condenadas pela metrópole inglesa.
No fundo, a melhor entre as muitas respostas para as peculiaridades brasileiras me parece passar pela conjugação dos diversos fatores, com ênfase nas circunstâncias (a vinda da família real para o Brasil), na base sócio-econômica e na natureza da elite. Isso não significa, sem querer ministrar receitas, introduzir na análise um ecletismo aguado, mas pensar a questão a partir de uma configuração de elementos que não estão sujeitos a uma lei de necessidade, mas que concorrem para um resultado final. Ou seja, nem a presença da corte bragantina no Brasil, nem o sistema escravista ou a natureza da elite impõem necessariamente o Estado monárquico unitário, mas são fatores que, na sua interação, possibilitam esse desfecho.
Quando se dedica aos principais temas dos anos que vão do regresso conservador à crise do Império, o texto de Murilo de Carvalho se torna mais convincente. Nessa altura, fica melhor demonstrado um pressuposto que me parece bastante fecundo. Trata-se da distinção entre a elite política e os interesses econômicos dominantes, que transparece no estudo de vários tópicos: o comportamento do Conselho de Estado, as diferenças entre o rei e os barões na questão do abolicionismo, o significado dos dois grandes partidos políticos imperiais.
No tocante ao último aspecto, o autor combina variáveis entre as quais se incluem a origem setorial de classe e características regionais para concluir que os dois agrupamentos partidários se compunham de coalizões distintas. O Partido Conservador, a seu ver, representava a aliança da burocracia com o grande comércio e a grande lavoura de exportação, em áreas como Pernambuco, Bahia e principalmente Rio de Janeiro, ao passo que o Partido Liberal representava a aliança de profissionais liberais urbanos com a agricultura de mercado interno e de áreas mais recentes de colonização (Rio Grande do Sul, Minas Gerais, São Paulo).
Essa caracterização é significativa. Em primeiro lugar, como constatação mais geral, pelo fato de reforçar a tese de que havia algum significado na divisão partidária, para além das disputas de facções em busca de favores e de cargos, certamente existentes. Depois, e sobretudo, porque revela a existência de tendências díspares no interior de cada uma das coalizões que compunham os dois partidos, razão pela qual nem um nem outro podia ter uma postura homogênea no tocante ao tema crucial da escravidão. Dada a sua composição, o Partido Conservador tendia a defender uniformemente a centralização política, mas se dividia quando se tratava de promover reformas sociais, para as quais apenas o setor burocrático demonstrava alguma sensibilidade. Por sua vez, o Partido Liberal tendia a sustentar a descentralização; porém só os profissionais liberais urbanos assumiam as propostas de reforma social.
Ao estabelecer distinções entre a burocracia estatal ligada ao imperador e a classe dominante, Murilo de Carvalho é certeiro na crítica a duas posições igualmente equivocadas e empobrecedoras, na abordagem das relações entre Estado e sociedade: de um lado, a que identifica pura e simplesmente Estado imperial e interesses agrários; de outro, a que sustenta a tese inversa da dominância de um estamento burocrático submetendo a sociedade.
Em suas palavras, o ponto não é negar a base classista da elite brasileira ou de qualquer elite. O núcleo da questão é afirmar que origem de classe, mesmo quando razoavelmente homogênea, pode deixar em aberto uma série de cursos alternativos de ação sobre os quais a elite como um todo, e portanto o Estado, tem poder de decisão.
Cabe aqui um reparo. Em várias passagens do livro, Murilo de Carvalho estabelece comparações entre o Brasil imperial e a Primeira República, enfatizando, no primeiro caso, a maior complexidade e o distanciamento das relações entre o Estado e a classe dominante. Para tanto, refere-se a uma frase de Sergio Buarque de Holanda, segundo a qual "o império dos fazendeiros (...) só começa no Brasil com a queda do Império".
Na verdade, os estudos sobre a Primeira República vêm demonstrando que as relações entre classes dominantes regionais e o Estado não se contêm na frase "império dos fazendeiros", percorrendo caminhos semelhantes aos do Império, apesar da inexistência na República de instâncias como o Poder Moderador e o Conselho de Estado.
Essa constatação indica que a complexidade das relações entre o Estado e a sociedade atravessa toda a história do Brasil, sendo necessário estabelecer, em diferentes momentos históricos, a natureza variável dessas relações. Reside aí um atraente desafio colocado à argúcia dos historiadores, qualidade que certamente não falta a José Murilo de Carvalho.

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