São Paulo, domingo, 29 de dezembro de 1996
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Cenas de humilhação coletiva

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Num programa de televisão de grande audiência, a talentosa atriz Marisa Orth foi entrevistada sobre o sucesso de sua personagem humorística Magda. Para quem não conhece, Magda procura encarnar o estereótipo da mulher "bonita e burra", como acentuava a reportagem. Até aí, nada de mais. Entre outras coisas, humor é irreverência e caricatura dos tipos e lugares-comuns da cultura.
Acontece que a produção do programa decidiu ser "realista e inteligente". Ou seja, decidiu ilustrar a personagem Magda com mulheres "burras e bonitas" da vida real. A repórter foi a um shopping center e entrevistou ao vivo garotas adolescentes, fazendo perguntas, segundo ela, "absurdas". A cada resposta supostamente disparatada, ecoava um estrepitoso "Cala a boca, Magda!", seguido de comentários depreciativos sobre a pretensa "burrice" das garotas entrevistadas.
O assunto passou em silêncio. Ao que parece, muitos acharam tudo isto mais do que "natural". Uma brincadeirinha para alegrar fins-de-semana tediosos. Não penso assim. Além da grosseria e do mau gosto, o ridículo a que foram expostas as garotas mostra como tratamos as pessoas neste país. Entrevistar jovens em lugares públicos e utilizar essas imagens para humilhá-las diante de milhões de telespectadores é um acinte a todos que, além da "inteligência" exigida pelos produtores, também tenham compromissos com valores morais.
O pior de tudo é que, a pretexto de dar aulas de inteligência, a produção acabou mostrando sua própria incapacidade de entender minimamente (a) o que é inteligência e (b) o que é responsabilidade de formar mentalidades num regime democrático.
Começo pela questão de inteligência. Quem viu o programa, logo notou que a produção meteu os pés pelas mãos, confundindo inteligência com informação ou, o que dá no mesmo, "burrice" com desinformação. A repórter, para mostrar a "burrice" de uma das garotas -por sinal uma das mais bonitas-, perguntou, num trecho: "Você acredita na terceirização?". A garota respondeu que "terceirização" tinha a ver com progresso tecnológico e tentou explicar o que entendia pelo termo, descrevendo o funcionamento da economia em setores primário, secundário e terciário. Obviamente, a garota desconhecia o sentido da palavra "terceirização" na acepção mais difundida pela mídia. Mas também, é claro, que nada tinha de "burra", se é que existe alguém a quem este qualificativo insultante deva aplicar-se. Ela recriou, no contexto do diálogo, um sentido de "terceirização" que, em absoluto, era obtuso!
O mesmo ocorreu com a pergunta: "Você acha que o assédio rural deve ser punido?". A garota, atônita com a estranheza da frase, tentou reler a questão, mostrando respeito, boa vontade e benevolência para com a estupidez do que lhe havia sido perguntado. Respondeu que qualquer assédio é ruim, seja no campo, seja no trabalho... Ela entendeu que "assédio rural" era uma forma elíptica de falar de assédio sexual ou qualquer outro, no meio rural! O que de "burro" existe nessa resposta? Como a garota poderia pressupor a deliberada má-fé implícita no modo como a pergunta foi feita?
Se os produtores do programa tivessem ouvido falar, nem que fosse um pouquinho, de Chomsky, Austin, Wittgenstein, Davidson ou Dennett, e conhecessem a dinâmica pela qual novas metáforas solicitam novos sentidos e, desse modo, enriquecem a linguagem ordinária, certamente seriam mais prudentes ao expor, em público, a própria ignorância. As respostas da garota, ao contrário do que foi afirmado, mostraram como ela é inventiva e inteligente. Quanto à desinformação, ninguém é obrigado a estar "up to date" com as bobagens cotidianamente criadas pela mídia, que tenta, com neologismos, tapar os buracos da falta de imaginação.
Mas o essencial não está aí. O essencial está na "lição de civismo e eticidade" da "ingênua brincadeirinha". Se os produtores não sabem, está na hora de aprender. Vivemos numa cultura em que "inteligência", para ser prezada, tem de estar à serviço do respeito à vida, à liberdade e à dignidade da pessoa. Hitler, Stalin, Franco, Mussolini e muitos bandidos, corruptos e delinquentes deste país foram e são homens extremamente inteligentes. Nem por isso são menos abomináveis. E se os abominamos é justamente porque serviram-se da inteligência que tinham para jogar fora os valores de nosso credo moral básico. Humilhar publicamente adolescentes só para cumprir tarefa e embolsar o gordo salário, isso sim, é "analfabetismo moral".
Alguém da produção pensou no que uma daquelas garotas poderia sofrer, vendo-se retratada como "burra" diante da família, do namoradinho, dos colegas de escola etc.? Alguém interessou-se em saber o que é a sensibilidade de uma adolescente, acossada pela publicidade e pela cultura midiática para ser "a mais bonita", a "mais inteligente", "a que tem o corpo mais perfeito", "a que tem o sexo e os afetos normais", "a que tem que estar preparada para competir na vida" etc.? Enfim, como um dos produtores reagiria caso uma daquelas garotas fosse sua filha e ele se visse impotente para defendê-la contra o poder da televisão? É assim que queremos fortalecer a autoridade dos pais em relação aos filhos e o respeito dos cidadãos pelas instituições democráticas, tais como a imprensa?
Para finalizar, há pouco tempo, a mesma emissora levou ao ar um belíssimo seriado inglês chamado "O Sentido da Vida", no qual um dos episódios tinha por título "Parceiros para a Vida". No documentário, mostrava-se como nossa sobrevivência na Terra depende da cooperação e solidariedade de todos os seres vivos. Um primor de sensibilidade, delicadeza, bom gosto e apelo ao respeito ao outro. Pois bem, vai aqui um conselho de graça aos patrões da emissora. Antes de admitirem esses "gênios" da impiedade, do escárnio e da arrogância, façam um vestibular. Peçam-lhes para ver o documentário. Quem não entender ou gritar "Cala a boca, Magda", que vá procurar emprego no "bas fond". Lá estará à vontade e em seu devido lugar -e não no interior de nossas casas, deseducando e ferindo moralmente nossos filhos.

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