São Paulo, segunda-feira, 30 de dezembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

De anjo a demônio, uma triste sina no futebol

ALBERTO HELENA JR.
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A gente costuma dizer que o ano passou rápido, não? Mas, visto daqui, um momento transcendental, mágico mesmo, do nosso futebol, daqueles que dão a impressão de ficar ali estagnado acima do tempo, como uma doce memória presente, parece que foi há um século.
Refiro-me àqueles quatro/cinco meses em que o Palmeiras conseguiu conjugar aos seus pés todos os valores eternos do futebol: eficiência, brilho, gols em profusão, tudo, enfim, tocado em vertiginosa velocidade, no medido senso de coletivismo em que as individualidades se sobressaiam aqui e ali como estrelas em céu de desenho animado natalino.
E o melhor exemplo do que digo se personifica em Rivaldo, o símbolo daquele time que bateu uma série incrível de recordes e nos encantou a todos.
Pois quem se lembra de Rivaldo? Por duas ou três desastrosas participações na Olimpíada, esse craque de múltiplos talentos, 24 anos de idade, foi sepultado como o paleolítico e anônimo caçador dos Pirineus, sob a neve dos tempos.
Está lá no La Coruña, fazendo gols, dando passes, driblando, chutando, cabeceando, mas, para nós, é como se nunca tivesse existido. Ou melhor: só existe naquela imagem congelada na memória -estático, dando a bola para o nigeriano iniciar o movimento fatal da nossa queda em Miami. Êta joguinho volúvel esse, hein?
*
E Ronaldinho? De anjo a demônio, em meras quatro rodadas. Essa é mesmo a sina do artilheiro: não marcou, dançou. E, muitas vezes, o estigma é selado mesmo com o artilheiro carregando nas costas um saco de gols, como um Papai Noel de chuteiras: se não fizer aquele predestinado, se perder o gol do título, por exemplo, é o suficiente para já cair em desgraça.
E é aqui que Pelé se torna ainda mais incomparável. Além de todos os atributos já cantados em prosa e verso, Pelé tinha a alma de campeão, de vencedor. Quanto mais sonora a vaia, mais crescia em campo.
Nunca me esqueço do tricolor rubicundo, calvo e sanguíneo, nas arquibancadas de um Morumbi lotado dos anos 60, ao final de um primeiro tempo dos sonhos para o São Paulo, que vencia o Santos por 3 a 0, sem que Pelé tocasse na bola.
Braços erguidos, olhar inquieto de pânico varrendo as escadas e implorando para seus companheiros do infortúnio que se anunciava: "Pelo amor de Deus, não vaiem o homem! Não vaiem!"
E a vaia tornou-se ensurdecedora. Pelé, então, simplesmente estancou à boca do túnel, encarou a torcida inimiga e, num gesto de mão espalmada, disse: "Esperem."
Final da história: 6 a 3 para o Santos -os que Pelé não fez, deu para os companheiros de bandeja.
E o tricolor rubicundo, calvo e sanguíneo, passou o segundo tempo todo cabisbaixo, murmurando para seus botões: "Eu disse, bem que eu disse. Eu disse pra não vaiar o homem."
*
O quê? Havelange abdicou? Sem dúvida. Só não sei se como De Gaulle, diante de falsos argelinos, ou se como Jânio, diante do mais puro escocês.
Pelo que consta, Havelange é adepto da temperança.

Texto Anterior: Inscrições estabelecem recorde
Próximo Texto: Ano de turbulências
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.