São Paulo, segunda-feira, 30 de dezembro de 1996
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Chomsky e os sócios silenciosos

LUIZ PINGUELLI ROSA

Um ponto alto de 1996 foi a visita ao Brasil de Noam Chomsky, para muitos o maior intelectual vivo na tradição crítica de Bertrand Russell e Jean-Paul Sartre. Quando esteve na UFRJ, disse estar havendo pressão dos EUA para privatizar a Vale do Rio Doce. Chomsky ser um dinossauro deixa bem os dinossauros.
Há na sociedade uma crítica crescente à privatização da Vale. O saldo da venda é disputado por governadores, que devem US$ 95 bilhões (Folha, 23/11). E pelos ministros da área econômica, que deram bilhões a bancos falidos e expandiram a dívida do governo em dezenas de bilhões, mantendo altos os juros, cujo pagamento evaporará em curto tempo o que for apurado na venda. Como entender isso?
Pressões de grupos econômicos ameaçam despencar o Real. Dirigentes da área econômica do governo são profissionais de grupos financeiros envolvidos nas compras de estatais. O "Jornal do Brasil" de 23/11 lista 15 ex-presidentes e ex-diretores do Banco Central e do BNDES e ex-ministros da Fazenda que hoje trabalham para grupos financeiros.
É útil fazer um paralelo entre a Vale e o setor elétrico. A Cerj foi vendida por valor muito acima do estipulado. Fica a dúvida se o grupo consultor subavaliou a Cerj, tal como a Light e, agora, a Vale. Passou a controlar a Cerj um grupo liderado pela Chilectra, empresa elétrica chilena, com empresas espanhola, portuguesa e pseudopanamenha.
Os mesmos grupos entram nos setores elétricos brasileiro e argentino. Dizem que vão reduzir as tarifas. Os dados da Cepal, referentes à tarifa média de energia elétrica para a indústria em junho de 94 no Brasil, no Chile e na Argentina, em US$/MWh, são respectivamente, 28,6, 69,1 e 83,0.
Como se vê, a tarifa industrial no Brasil é muito menor. Mas está aumentando com a privatização, sendo hoje, em média, US$ 47 por MWh. Ademais, a Light, sob o controle da EDF, estatal francesa, com competência técnica, vai aumentar sua tarifa em 8%, coisa que, se não fosse privatizada, jamais conseguiria. E a qualidade dos serviços não melhorou, como mostram os apagões no Rio. Empresários foram a Brasília reclamar do aumento da tarifa da Light, por prejudicar a competitividade.
Onde estão os empresários brasileiros na privatização do setor elétrico? O grupo Ivens, que controla a Escelsa, ia disputar a Cerj, porém não compareceu. Não se apresentaram também outros grupos, como o Bozano, que participou da Escelsa, mas, depois, vendeu sua parte.
Como entender que uma empresa do Chile, um país menos industrializado, com menor investimento na área de energia e menor base tecnológica, tenha uma posição tão melhor do que as empresas brasileiras? A privatização no Chile preservou a estrutura das empresas elétricas, sem seguir o modelo inglês de "desverticalizar" um setor fortemente afetado pelos custos de transação. Ademais, buscou participação nacional e de fundos de pensão. O Chile, como disse Chomsky, mantém estatal a principal mineradora de cobre, a "Vale" chilena.
Poderá ocorrer com a Vale desestruturação semelhante à do setor elétrico. O grupo estrangeiro consultor do governo para vender Furnas propõe acabar com a figura da concessão de serviço público, prevista na Constituição, e aumentar muito as tarifas, com base no custo marginal de longo prazo, o que dará uma renda absurda para hidrelétricas já existentes.
Os consultores não conseguiram resolver como introduzir competição na geração hidrelétrica no sistema interligado brasileiro, do qual eles entendem pouco. Raciocinam com base na experiência que têm em termelétricas.
A competência na engenharia do sistema hidrelétrico integrado no Brasil é maior não só do que no Chile, em Portugal e na Espanha, mas do que na França, nos EUA e no Reino Unido. Empresas elétricas como a Cemig, a Copel e Furnas têm ótima performance técnica e econômica, inclusive realizando parcerias com empresas privadas. A Escelsa, privatizada com capital nacional, tem direção de brasileiros.
A venda de Furnas poderá desestruturar o sistema de geração hidrelétrico, se for feita à moda inglesa. O Ilumina, instituto fundado no Rio para a reestruturação do setor elétrico, distingue empresa estatal de empresa pública, com controle acionário e gerencial privado, mantendo objetivos públicos no pacto de acionistas.
Os empresários deveriam refletir. Perderão a Vale para concorrentes de fora, como a Anglo American. Depois será a vez de Furnas e depois, nos planos do FMI-Banco Mundial, será a da Petrobrás, que ainda permanece como instrumento do governo para garantir o abastecimento de petróleo. Perderão vantagens comparativas em minérios, petróleo, gás natural e eletricidade.
Giovanni Arrighi, em "O Longo Século 20", escreve sobre as mudanças no capitalismo mundial: "É como se os capitalistas ativos até aquele momento se reconhecessem incapazes de se adaptar às condições suscitadas (...). Retiram-se da luta e se transformam numa aristocracia (...) (, a qual,) quando desempenha um papel (...), o faz de maneira passiva (...), de sócia silenciosa". A presença industrial e tecnológica do Brasil no Mercosul e na América Latina poderia crescer se nossas empresas privadas, em vez de serem sócias silenciosas de privatizações com cartas marcadas, explorassem as oportunidades da globalização, como os países do Sudeste Asiático, gerando empregos.

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