São Paulo, terça-feira, 31 de dezembro de 1996
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Sviatoslav Richter transporta Bach e Mozart para outras esferas

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Tem coisas que eu gostaria de fazer todos os dias e, por um motivo ou outro, acabo não fazendo: ler um bom poema, passear com as crianças, ficar quieto, ouvir Sviatoslav Richter.
A integral do "Cravo Bem Temperado" de Bach, gravada por Richter em 1973 e relançada em CDs pela RCA é, na minha opinião (e na do professor Francisco Achcar, na qual confio mais que na minha), uma das melhores coisas que a espécie produziu neste século de barbárie e matança.
Taciturno, recatado, Sviatoslav Richter é o pianista dos pianistas, mais idiossincrático do que Horowitz, mais inimitável do que Michelangeli, mais cheio de sabedoria do que Rubinstein.
Toca numa dicção toda sua e num tempo próprio: nas suas mãos, a música se traduz para uma outra esfera. Há uma espécie característica de distanciamento, ou velamento da interpretação que só ele sabe controlar; e há fogos e explosões também.
No ano passado, para comemorar os 80 anos do pianista, a Philips lançou uma volumosa coleção de gravações "autorizadas" (as piratas são igualmente numerosas).
Mais recentemente, lançou também uma seleção, "The Essential Richter" (5 CDs), com alguns dos melhores momentos da coleção, incluindo um famoso recital em Sófia, de 1958, com os "Quadros de uma Exposição" de Mussorgski, e peças diversas de Beethoven, Brahms, Liszt e outros.
Ao vivo
Agora é a vez da Teldec lançar a gravação ao vivo de um recital de Richter, em Parma, de 1993. São dois concertos de Bach (transcritos pelo próprio compositor da versão original para violino), mais o Concerto nº 25 para piano e orquestra de Mozart. Richter é acompanhado pela Orquestra di Padova e del Veneto, regida por Yuri Bashmet.
Não é preciso ser especializado em música antiga para estranhar a interpretação dos concertos de Bach. Richter permanece indiferente às invenções e descobertas da musicologia, aos estudos de ornamentação e frascado que tanto têm marcado a performance da música barroca nas últimas duas décadas.
E ainda bem: a última coisa que se quer é Richter tocando de alguma forma que não seja a sua. A musicologia é democrática, uma educação para todos: tocar como Richter é para quem pode -aliás, só para ele.
A dois terços do primeiro movimento do Concerto em ré há uma passagem que define tudo. A orquestra se cala e o pianista tem uma cadência, antes da orquestra retomar o tema. A cadência é convencional, dois compassos levando de volta à tônica. Mas Richter faz algo injustificado e extraordinário, toca num outro tempo, bem mais lento e especialmente num outro registro emocional, distante de tudo o que passou.
A música se despede, numa outra música e desaparece em dois segundos de silêncio. Depois começa de novo -mas nunca mais será a mesma.
Richter dobra, na mão esquerda, o baixo contínuo da orquestra (que inclui, estranhamente, um cravo). É um Bach, para nossos ouvidos, pesado, anacrônico. É um Bach maravilhoso, também, idiossincrático e inesquecível. O Mozart, em comparação, decepciona (menos o segundo movimento); em parte, sem dúvida, pela orquestra, que não está à altura do convidado.
A Teldec anuncia ainda um CD com sonatas de Mozart, acrescidas de um "acompanhamento livre" composto por Grieg, e interpretadas por Richter e Elisabeth Leonskaja. É uma curiosidade e mais que uma curiosidade. É uma visão de iluminações e felicidades futuras, mais um disco de Richter, que algum dia -ou todos os dias- espero ter a chance de ouvir.

Disco: J.S. Bach: Concertos BWV 1054 e 1058
W.A.Mozart: Concerto nº 25, K. 503
Orchestra di Padova e del Veneto
Regente: Yuri Bashmet
Lançamento: Teldec
Quanto: R$ 20, em média

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