São Paulo, sexta-feira, 2 de fevereiro de 1996
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'Welfare' à brasileira

CELSO PINTO

Quando se discutem os nós para equilibrar as contas públicas no país, o Planejamento costuma pôr a culpa nos juros e o Banco Central no excesso de despesas correntes. Na verdade, as duas coisas aconteceram, mas existe um ator oculto sobre o qual muito pouco se discute: a Constituição de 1988.
O economista Raul Velloso, um dos maiores especialistas em contas públicas no país, fez algumas contas para provar um ponto fascinante.
Boa parte da confusão fiscal, argumenta, vem da tentativa do país de montar, ao mesmo tempo, um "welfare state" à brasileira e uma estabilização inflacionária.
Velloso compara os números de 1994 e 95, que refletem o cenário com inflação baixa, com o período 1991-93.
A receita fiscal federal deu um salto extraordinário, de 30% (já descontada a inflação) e chegou ao pico possível, já que a carga tributária bateu em 31% do Produto Interno Bruto.
A este enorme aumento de receita, contudo, corresponderam dois movimentos: um aumento ainda mais forte de algumas despesas e um esforço expressivo para reduzir o déficit público.
Os dois gastos que mais aumentaram foram as despesas da Previdência, 54% reais e de pessoal, 42% reais. Os gastos com saúde também subiram em termos reais, mas mais lentamente, em 8%.
Para acomodar estes gastos, quem mais sofreu foi o orçamento tradicional, que despencou 43% em termos reais, de R$ 700 milhões por mês para R$ 400 milhões.
É neste orçamento tradicional que entram alguns gastos essenciais, como educação e os investimentos em infra-estrutura.
Ao mesmo tempo, o esforço de estabilização fez com que o déficit operacional caísse 78%, de 0,9% do PIB para 0,2%.
Por que alguns gastos subiram tanto? No caso da Previdência, no ano passado, houve o impacto do generoso aumento real do salário mínimo, mas Velloso mostra uma tendência de mais longo prazo.
Em 91-92, os benefícios representavam 76% das contribuições, em 95 eles já eram 101%.
Na margem, os benefícios pagos pela Previdência estão crescendo a 7% ao ano, enquanto as contribuições tem subido 4,5%.
A Constituição de 88 ampliou bastante o universo dos benefícios sociais e previdenciários e eles foram entrando em vigor gradualmente.
Neste ano, por exemplo, passa a valer a garantia de renda mínima para idosos e deficientes. O seguro-desemprego virtualmente inexistia até 88 e hoje consome cerca de R$ 2,4 bilhões ao ano.
Tudo o que a Constituição de 88 fez foi louvável, do ponto de vista social, como dar direito ao trabalhador rural de se aposentar.
Mesmo com os novos benefícios, ninguém imagina estar vivendo numa Suécia.
Só que ninguém se perguntou de onde viria o dinheiro para os benefícios, ou que impacto estes gastos teriam.
Como os recursos são escassos, alguns efeitos foram perversos. A Constituição universalizou o atendimento da saúde pública.
Só que uma parte do dinheiro da saúde vinha do superávit da Previdência (R$ 450 milhões por mês).
Com a Previdência deficitária, o dinheiro teve que vir do orçamento fiscal.
Fez-se um grande esforço adicional, mas os gastos só cresceram 8%. Como os benefícios aumentaram, mas não o dinheiro, o resultado foi o aumento de filas para atender os pacientes e a deterioração do serviço.
Não é por acaso que o ministro da Saúde batalha por garantir um imposto só seu.
O aumento real de 42% nas despesas com pessoal também merece duas qualificações. Em parte, ele também refletiu benefícios extras da Constituição, como adicional de férias e aumento de 20% quando o funcionário público se aposenta.
Além disso, o salto nas despesas recompôs o achatamento do período Collor.
Mesmo com o salto, nas contas de Velloso, os salários federais ainda estão dentro do teto legal de 60% das receitas líquidas, ao contrário do que ocorre com os Estados, onde eles chegam até a 95%.
Olhando o quadro que ficou, sobram razões para reclamações. A rede de benefícios previdenciários e assistenciais aumentou, mas como continua precaríssima, poucos têm esta percepção.
A saúde ficou num córner: atende mais gente, mas atende pior.
O caso da educação é ainda mais dramático. Todo mundo concorda que investir na educação é essencial para o futuro, mas ela ficou perdida na fatia do orçamento que teve que pagar outras contas.
O mesmo vale para investimentos essenciais em infra-estrutura.
Do outro lado da balança, também há insatisfação. Apesar de toda redução do déficit público, ela ficou aquém do que seria recomendável para um país que saiu de uma hiperinflação.
A conciliação é difícil, mas não impossível. Ajudaria, se a discussão colocasse pelo menos os termos do problema em seu devido lugar.

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