São Paulo, sexta-feira, 2 de fevereiro de 1996
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Livro é roteiro disfarçado de romance

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Somente o cinema pode fazer o milagre de melhorar um livro ruim. Quem sabe "Dois é Demais" (1975), romance policial do americano Donald Westlake, tenha esse destino -acaba de ser adaptado ao cinema pelo espanhol Fernando Trueba. Se bem que o próprio Trueba confesse que alterou muito história e personagens para chegar ao filme "Two Much".
Também envolvido com cinema, Westlake escreve roteiros -entre eles, "Os Imorais"- e certamente não distingue muito um gênero de outro. "Dois é Demais" é um roteiro disfarçado de romance. Mas é o livro preferido de seu autor. Westlake diz que "tem caráter experimental" e que tentou escrever um romance "cujo protagonista fosse um autêntico canalha, mas que, apesar disso, o leitor simpatizasse com ele".
O canalha está, de fato, construído. A simpatia do leitor são outros quinhentos. O canalha é o personagem Arthur Dodge, mistura de playboy vagabundo e inofensivo com estelionatário do acaso. Sempre envolvido em relações amorosas triangulares, ele transa com a mulher do melhor amigo e mantém um caso com duas irmãs gêmeas idênticas, fingindo ser também ele duas pessoas -um irmão gêmeo idêntico inventado.
Descobre que pode se dar bem na vida sem fazer muita força e vai até o fim nesse objetivo, enredando-se em histórias sujas, que incluem dinheiro, pornografia e assassinatos. Tudo é de uma superficialidade insultuosa, da linguagem debochada à trama construída a partir de clichês óbvios.
Na tentativa de traçar um paralelo do livro de Westlake com a obra da grande escritora americana de romances policiais Patricia Highsmith (1921-1994), Trueba tenta salvar a literatura do primeiro (e talvez seu filme), alegando tratar-se de "um romance amoral, divertido, anticonvencional, moderno, mais próximo do realismo sujo que dos clássicos do gênero".
Os adjetivos, vazios, caem por terra. Nada no livro de Westlake lembra a agilidade da linguagem, as sutilezas da construção do suspense, a seriedade, a densidade da busca, a misteriosa tristeza dos personagens de Highsmith.
O herói Arthur Dodge e seus coadjuvantes são tão achatados que desaparecem no exato momento em que se fecha o "romance policial" em que nasceram.
Têm o mesmo grau de profundidade que as frases dos cartões de Natal e aniversário fabricados pelo protagonista. É a mesma filosofia de vida gravada em pára-choques de caminhões -com certo esforço, decifrando letras sob a camada de poeira da estrada, pode-se dar uma risadinha ou outra.

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