São Paulo, sábado, 3 de fevereiro de 1996
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Dançarino disputa título de 'o melhor'

RUY CASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando se falar em Gene Kelly no futuro longínquo -e há dúvida sobre se ele será lembrado?-, a imagem que piscará na memória será aquela de "Cantando na Chuva": abraçado ao poste, falando do glorioso sentimento de estar feliz e distribuindo essa felicidade para a platéia, inundando-nos com seu prazer de dançar naquele toró.
Mas um buquê dos grandes momentos de Gene no cinema, que foram muitos, seria ainda mais arrebatador. Por ordem de sua aparição na tela, as seguintes amostras dão idéia do quanto lhe devemos.
Gene dançando com Tom & Jerry em "Marujos do Amor". Gene, Frank Sinatra e Jules Munshin na abertura de "Um Dia em Nova York". Gene e Vera-Ellen no balé "Slaughter on Tenth Avenue", de "Minha Vida é uma Canção". Gene e as crianças ao som de "I Got Rhythm", em "Sinfonia de Paris". Gene sapateando de patins e cantando "I Like Myself", em "Dançando nas Nuvens".
Mas esses são apenas os momentos mais famosos, os "highlights". Ele deixou outras sequências tão inspiradas quanto, que muitos dançarinos dariam uma perna para ter filmado.
Quem mais teria um cartel como esse a exibir? Fred Astaire, claro -mas só ele e mais ninguém. O que leva à pergunta que tem torturado sucessivas gerações de cinéfilos nos últimos 50 anos: quem foi maior, Astaire ou Kelly?
Bem, este cinéfilo, pelo menos, encontrou a sua resposta definitiva: Astaire foi o maior dançarino -e Kelly também. Ou vice-versa. Cada qual a seu modo, Astaire e Kelly foram mundos completos, com luas e sóis particulares.
Donde parece injusto que, ao se falar de Gene, mesmo no dia de sua morte, seja inevitável mencionar Fred. Mas há motivos para isso: Astaire (nascido em 1899) era 13 anos mais velho e chegou a Hollywood em 1931, dez anos antes de Kelly.
Naquela época, os musicais significavam um bando de gente em cena sapateando, com coreografias maciças, ângulos excêntricos de câmara e cortes e efeitos à Busby Berkeley, para esconder a pouca ou nenhuma habilidade dos dançarinos. Astaire chegou e mudou tudo: exigiu câmara à altura dos olhos, o dançarino de corpo inteiro no quadro, o mínimo possível de cortes. Quem não soubesse dançar, rua. Foi uma revolução.
Kelly chegou em 1941 e fez a revolução na revolução. Incorporou tudo que Astaire havia conquistado, mas acrescentou recursos específicos do cinema à dança, sem tirar o pé da realidade.
Na sequência com Jerry em "Marujos do Amor", teve de criar uma coreografia em que dançava com um rato imaginário.
O qual foi acrescentado depois por Hanna e Barbera, criadores do personagem, a um custo de nada menos que 10 mil desenhos para sincronizar com os movimentos de Gene. Tudo isso já seria formidável. Mas a grande revolução de Gene Kelly foi a de trazer a dança do cinema para as ruas.
Em contraste com a leveza de Fred, nascido para roupas e cenários tão elegantes quanto ele, Gene se dizia um chofer de caminhão. Nas poucas vezes em que dançou de cartola, borboleta e casaca, a marca de Fred, parecia um peixinho dourado num tapete persa.
Suas roupas eram as do dia-a-dia: boné, calças comuns, a camiseta com as mangas enroladinhas. E os cenários e objetos de sua dança eram os que ele encontrava pelo caminho: postes, poças d'água, um guarda-chuva, tampas de lata de lixo, folha de jornal.
E, para ele, importante: dançar era coisa para homem. Durante toda a sua vida, Gene lutou contra o preconceito de que a dança seria um refúgio dos efeminados.
Ele não era apenas o artista frente às câmeras. Estava também atrás delas, porque era o seu próprio coreógrafo e, exceto quando o diretor se chamava Vincente Minnelli, era Gene quem dirigia a si mesmo nos musicais -em parceria com Stanley Donen, um corista da Broadway que ele levara para Hollywood como seu assistente e que depois ganhou asas próprias. Mas, como o próprio Gene admitiu, a dança é um ofício ingrato.
Quando o dançarino chega ao ápice, em termos de experiência e savoir-faire, seu corpo começa a traí-lo. E o indiscutível ápice de Gene foi quando ele rodou "Cantando na Chuva", no segundo semestre de 1951 -aos 39 anos.
Se sabia que já não seria o mesmo como dançarino, poderia ser até maior como coreógrafo e diretor, e preparou-se para isso.
Mas coincidiu que os estúdios perderam o monopólio das salas de exibição. Hollywood faliu, a MGM praticamente fechou e os musicais tornaram-se itens da nostalgia. Gigantes como Gene Kelly viram-se subitamente sem uma tela de 9 metros de altura por 14 metros de comprimento, as únicas medidas nas dimensões de um gênio capaz até de fazer chover.

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