São Paulo, domingo, 4 de fevereiro de 1996
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O nó da questão

ROBERTO CAMPOS

O governo não é a solução, é o problema. Esta pequena frase do ex-presidente Reagan resume a grande dificuldade do mundo de hoje. Em todas as partes, desde os anos 30, o setor público tem crescido mais do que a economia, ganhando uma proporção crescente do PIB.
Fenômeno complexo, em que entram razões boas e más. Em geral, as pessoas começaram a querer mais bens e serviços públicos.
A depressão dos anos 30, que atingiu mesmo as mais prudentes, sensibilizou o público para fazer alguma coisa contra o desemprego involuntário, as carências e disparidades sociais.
Depois, com Keynes, apareceu a varinha de condão: o governo, bombeando a demanda agregada, poderia acabar o desemprego, e regular a economia a seu gosto -o que foi pretexto par justificar muita besteira e gastança.
Como os gastos públicos são feitos com dinheiro dos outros, dão a impressão de ser de graça. Não é fácil perceber que são "custos" que alguém vai ter de pagar.
Essa anestesia faz a festa dos políticos. Gastar não dói. Quem gasta, no governo, não é quem arrecada. Por isso, quem tem de controlar o cofre é o grande chato de qualquer governo, o estraga-festa.
Depois das crises dos anos 70, no entanto, a opinião pública mundial começou a dar-se conta de dois fatos importantes.
Primeiro, que havia gastos demais e eficiência de menos. E segundo, o óbvio: aquilo que o governo gasta, é o contribuinte quem paga.
Não foi fácil reconhecer essa obviedade. Décadas de pregação socialista haviam infiltrado no subconsciente de muitos que os recursos existiam à vontade.
Só que estavam nas mãos dos "ricos", da "burguesia" -e a forma de arranjá-los era expropriar, ou na marra, ou por impostos.
A depressão (cujas causas, aliás, foram tanto políticas quanto econômicas) fez o público procurar a aparente segurança dos controles governamentais.
Mas, desde a Segunda Guerra, as coisas tinham mudado completamente. A produção multiplicou-se muitas vezes, graças ao formidável desenvolvimento tecnológico, à educação e ao treinamento (isto é, à formação de "capital humano"), à acumulação de capital físico, e à divisão do trabalho como resultado da enorme expansão do comércio internacional.
O velho "proletário" sumiu de vista, como o "sans-culotte" jacobino dos bons tempos em que a guilhotina era o grande argumento ideológico da turma radical.
Em vez dele, cresceu o bolo de uma gigantesca classe média, com boa escolaridade, salários à altura das crescentes demandas tecnológicas, bastante informação, conforto, seguro-desemprego, planos de saúde e de aposentadoria, pensões. A "sociedade de consumo", enfim.
Por volta dos anos 80, as pessoas começaram a compreender que já não estavam mais no tempo da depressão, e que a gastança e o intervencionismo do governo tinham de ser repensados em termos de custos e benefícios.
E que não podiam mais deixar os políticos alegarem impunemente seus objetivos "sociais". Era preciso ver quem ganharia o quê, e pesar méritos e alternativas.
As faraônicas pirâmides burocráticas revelaram-se inerentemente ineficientes. Mesmo em países supostamente bem administrados, os custos de gastar o dinheiro do contribuinte com os fins que os políticos acham meritórios são disparatados.
Nos Estados Unidos, o custo burocrático de cada dólar "social" atinge 50 centavos!
Foi isso que despertou pelo mundo a fora um novo e sério esforço de reflexão, que alguns tem chamado de "neoliberalismo", mas no fundo é apenas um retorno à racionalidade, porque o pensamento liberal nunca foi outra coisa.
O recente surto do neoliberalismo foi proporcional ao inchaço do Estado assistencial. Este paparica tanto os já empregados, que não tem recursos par incorporar os desempregados.
No ano passado, os gastos do governo na Suécia alcançaram 67% do PIB, na França, 54%, na Alemanha 50%. Nos Estados Unidos, menos assistencialista, 34%.
Financiando esse inchaço estatal por tributação punitiva, a economia perde dinamismo para criar empregos. O excesso de "inclusão" de uns gera a "exclusão" de outros.
Embora a maioria das pessoas continue a partilhar valores básicos de solidariedade humana, muitos passaram a questionar se esses valores estão sendo adequadamente atendidos pelos mecanismos políticos e pelas burocracias do Estado.
E querem saber a eficiência, os critérios e a legitimidade dos aparelhos que tomam as decisões de tirar de uns e de dar a outros. É isso que se chama de "crise do Estado moderno".
No Brasil, porém -fora do combate à inflação, recém-descoberto com grande entusiasmo graças aos seus resultados eleitorais- continuamos no subdesenvolvimento mental pré-queda do Muro de Berlim, sem uma centelha de compreensão de que o primeiro dos problemas é a conjugação da ineficiência generalizada do Estado com a baixa representatividade do sistema político.
Nossa relação com o Estado é ainda colonial, a do súdito em relação à metrópole. O governo não é um instrumento nosso -é uma força de ocupação de demagogos, corporativos e clientelistas que nos domina e explora.
Não conseguimos progredir na reforma política. O Brasil, hoje, não passa de um vasto bingo eleitoral. Os países avançados têm sistemas distritais ou mistos, que espelham melhor a vontade do público, reduzem os custos das campanhas, fortalecem os partidos e aumentam a estabilidade política.
E, na sua maioria (salvo os Estados Unidos, ao contrário de nós, uma verdadeira federação), são parlamentaristas. Este é um sistema mais representativo e democrático, que permite mudar governo a qualquer momento sem quebra da estrutura institucional.
Nosso sistema proporcional (em que o voto de um paulista vale uma fração do voto de um amapaense...) é uma loteria, que praticamente força o político a fazer qualquer coisa para garimpar alguns votos: atitudes demagógicas, uma torneira aberta de projetos de lei para aparecer e para agradar os mais variados grupos, a permanente briga para distribuir subsídios que prometam algum retorno eleitoral.
Nos Estados, sendo todos os políticos do mesmo partido concorrentes uns dos outros, fragiliza-se a disciplina e prejudica-se o papel fundamental dos partidos.
Dá para estranhar que o público esteja cansado de um sistema que responde tão mal às suas demandas?
Dá para estranhar que persistam os abusos, os salários espantosos dos marajás, o arbítrio da remuneração que o Legislativos e o Judiciário fixam como bem entendem?
As estatais cuja verdadeira razão de ser é fornecer cargos para barganhas políticas (para quê servem as 28 empresas telefônicas, por exemplo?), a multiplicação de municípios inviáveis por causa do Fundo de Participação, o corpo mole que impede alguma ordem nos gastos dos Estados e municípios?
O subdesenvolvido procura soluções mágicas. Quando faltava chuva, o inca não tinha dúvida: sacrificava algumas crianças ao deus de plantão.
Aqui, a mágica agora é o denuncismo do "pega corrupto". Esquecemos as razões profundas da corrupção, a falência múltipla do Estado, obsoleto, corporativo, ocupado por interesses espúrios, cuja ineficiência tem por maiores vítimas os pobres e indefesos...
Se continuar a pensar nos sintomas, e não na doença, não conseguiremos mudar as coisas. Só se Deus for mesmo brasileiro...

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