São Paulo, domingo, 4 de fevereiro de 1996
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A dama estrangeira ou o mistério das letras misturadas

ANA MIRANDA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um homem chega ao palácio real em Lisboa. Cruza os corredores, entra na sala de música e se ajoelha aos pés da princesa. Entrega à adolescente um delicado exemplar de um livro dedicado à alteza que, melancólica, o deposita em uma almofada. Na capa está escrito: "Máximas de virtude e formosura, com que Diófanes, Climenéia e Hemirena, príncipes de Tebas, venceram os mais apertados lances da desgraça, oferecidas à princesa nossa senhora, a senhora d. Maria Francisca Isabel Josefa Antonia Gertrudes Rita Joanna. Por Dorothea Engrassia Tavareda Dalmira. Lisboa, na oficina de Miguel Manescal da Costa, impressor do Santo Ofício. Ano 1752, com todas as licenças necessárias".
A princesa dá um sorriso estranho, percebe-se um ar de loucura nos seus olhos.
Não se sabe quem é Dorothea Engrassia Tavareda Dalmira, a autora do romance que conta as aventuras dos reis de Tebas, escrito para a futura rainha, ensinando-lhe regras de comportamento e atacando a monarquia, da mesma forma que Fénelon escrevera as aventuras de Telêmaco para instruir o jovem duque de Borgonha, ensinando-lhe mitologia e poesia gregas, e para fazer críticas a seu avô, Luís 14. Na Corte sussurram pelos corredores, durante as tertúlias, as festas, as caçadas: quem teria tido a ousadia de escrever aquele romance que critica o despotismo do rei? Descobre-se que Dorothea, simplesmente, não existe.
À mesa de gamão, um padre e um conde procuram desvendar o segredo que há no nome suposto da autora. Estendem no veludo as 32 letras do nome de Dorothea Engrassia Tavareda Dalmira e realizam toda sorte de combinações. Depois de uma noite em claro, muitas doses de licor de anis e bocetinhas de rapé, têm a revelação: é um anagrama perfeito do nome Dona Theresa Margarida da Silva e Orta, sem sobrar nem faltar uma só letra.
Os dois homens se assombram. É a amiga de Alexandre de Gusmão!
Que senhora é esta?
Numa sessão de academia, o padre e o conde falam sobre sua descoberta. O livro, de intensa erudição, foi escrito por uma senhora, dona Theresa Margarida, irmã do moralista Mathias Ayres, que acaba de publicar uma reflexão sobre a vaidade dos homens. "Certamente a autora foi orientada pelo irmão e pelo protetor Alexandre de Gusmão", diz o padre.
Alguém lembra que o livro pode ter sido escrito pelo próprio Alexandre. O geógrafo e embaixador Alexandre de Gusmão, 57 anos, foi secretário privado do rei dom João 5º e autor de libretos de óperas. Um homem de espírito sarcástico, que enviava aos inimigos cartas "rápidas e cortantes como chicotadas", o mais esclarecido de sua época, de grande influência na Corte até a morte do rei, dois anos antes. É irmão de Bartolomeu, o padre criador de um aeróstato e que diante de dom João 5º fez um pequeno balão de papel com foco ígneo subir até o teto da sala, pelo que passou a desfrutar de muita popularidade como Padre Voador.
"Alexandre de Gusmão pode ser o autor do romance, pois é conhecido seu iluminismo de estrangeirado, seu horror ao despotismo e sua virulência na crítica ao novo governo."
"Por que precisaria Alexandre se fazer passar por mulher, em vez de receber as glórias da autoria do romance?", diz alguém.
"As glórias e os cárceres."
"Ora, pode ter sido escrito pelo irmão de Alexandre, o padre Bartolomeu", zomba um acadêmico.
"Este está mais interessado em máquinas elevatórias, modos de bombear água dos navios e um sistema de lentes."
"Para assar carne ao sol", grita alguém. Ecoam gargalhadas na sala.
"Dona Theresa, por sua vez, teria motivos para não revelar que é a autora do romance", diz o conde.
"No livro pode-se perceber uma reação contra a política adotada pelo novo rei dom José 1º. Isso, por acaso, é assunto para uma senhora?"
"Por que não?", responde o padre. "Nas palavras que antecedem a obra, a autora reafirma", o padre abre o livro e lê, "esta obra, lembra-te que é de mulher, que nas tristes sombras da ignorância suspira por advertir a algumas a gravidade de Estratônica, a constância de Zenóbia, a castidade de Hipona, a fidelidade de Políxena e a ciência de Cornélia. Sim, a autora é uma senhora, dona Theresa Margarida, a filha de José Ramos da Silva".
"Mas quem é esta senhora?", perguntam-se as pessoas presentes.
Prazeres no claustro
Theresa Margarida é uma bela mulher de cerca de 40 anos de idade. Embora não seja nobre, é aceita nos salões reais, nas conferências secretas e eruditas das academias, nas aulas no paço, pois foi educada no convento das Trinas, letrada, instruída em poesia, música, astronomia, e é conhecedora de línguas. Seu pai possuía o palácio dos Condes de Alvor, propriedades em Alemquer, em Belas, a quinta da Corujeira, onde se enchem a cada ano mais de 300 pipas de vinho e tantas outras quintas, capelas, abegoarias, logradouros, vastíssimos domínios. Seus amigos são pessoas poderosas do governo anterior, dizem até que Theresa teria beijado a mão de dom João 5º num Te Deum em Odivelas, onde o soberano ia se encontrar com sua amante, a freira Maria Paula, e que o rei apreciava o comportamento exuberante da súdita, afinal, fora ele quem mandara as mulheres arrancarem do rosto os véus negros, quem abrira as janelas do paço, iluminara com milhares de velas os salões, colorira as roupas, fizera cintilarem aljôfares e damascos, mandara que toucassem os rostos com pós alvos, cobrira de ouro os colos das mulheres e permitira que os homens usassem leques. Mas Theresa sempre foi vista com reserva na Corte, pois é estrangeira. Nasceu no Brasil.
Nasceu em São Paulo, enquanto seu pai, minerador enriquecido nas Minas Gerais, com um pequeno exército de escravos lutava no Rio de Janeiro para expulsar os franceses que haviam invadido a cidade em 1711. Desses colonos, diziam em Portugal serem daquele tipo de rapaz que foi de pés descalços "roubar nos Sertões as Minas, e cá vem dispender às mãos cheias", e mais, "esquecido do seu antigo estado; porque toda a memória conserva no presente: Trovão da rua nova, nos dias de pagamento, e muitas vezes sucede ser relâmpago a sua riqueza".
Mas a riqueza do pai de Theresa Margarida era sólida. Quando a menina tinha cerca de cinco anos, ele voltou ao reino e comprou ingresso entre a nobreza, tendo em toda sua vida emprestado dinheiro a fidalgos como o marquês de Valença, que nunca lhe pagou, ou o conde de Ericeira, que o olhavam, todavia, com desdém. O pai pôde educar seu filho como um nobre e suas filhas nos melhores conventos. No mosteiro das Trinas, Theresa conheceu uma vida de liberdade e prazer, entre grades de doces, lausperenes, visitas de homens apaixonados por freiras, as mulheres mais desejadas na época, as musas, as amantes. Ali, sem a presença opressiva do pai, Theresa aprendeu a ler, escreveu poemas, conheceu rapazes, apaixonou-se e decidiu que não queria ser freira. Contra a vontade dos pais, deixou o mosteiro.
Também enfrentando as tempestades familiares, resolveu casar com o jovem que amava, filho de um desembargador, mas sem nenhum sangue azul. O pai ameaçou deserdá-la, não permitiu que ela avistasse o pretendente, expulsou de casa a criada que guardava as cartas de amor, fez insinuações torpes sobre sua honra, ficou doente à morte durante seis meses, mas nada a demoveu. O pai a meteu numa carruagem, levou-a para a quinta da Agualva e a trancou num quarto escuro, sem deixar que falasse com ninguém. Obrigou-a a assinar um papel sem saber o que continha, subornou gente, fez tudo para impedir o casamento.
Porém, depois de uma batalha judicial, instruída pelo sogro, usando uma lei que protegia as filhas que desejavam contrair matrimônio sem autorização do pai, com apenas 16 anos Theresa Margarida casou com o holandês. O pai cumpriu sua promessa e por uma escritura pública a deserdou. Em meio a dificuldades financeiras, uma gravidez atrás da outra, brigas familiares, obrigações domésticas, maternais e de esposa e intensa vida intelectual, ela teria escrito o romance.
"Impossível", gritou alguém, indignado.
Paixões líricas e fatais
Sete anos depois de publicado, o livro foi registrado pelo abade Barbosa Machado, no tomo 4 da monumental "Biblioteca Lusitana", como de autoria de Theresa Margarida da Silva e Orta. Antes de fazer tal afirmação, o abade consultara Alexandre de Gusmão sobre sua bibliografia, que lhe dissera não ter nada escrito; isso em 1740, mas Theresa também fora consultada e, quando o abade publicou sua "Biblioteca", ela não a contestou. Porém, depois da morte de Theresa, em 1790, uma nova edição atribuiu, na capa, a verdadeira autoria a Alexandre de Gusmão, o embaixador e não seu padrinho, jesuíta que vivera no Brasil, e que, este sim, escrevera obras de ficção.
"Aventuras de Diófanes", como foi intitulado na segunda edição, é, portanto, o primeiro romance publicado por um autor brasileiro (Alexandre também era paulista, nasceu em Santos). Theresa o escreveu um século antes de ser publicado o que costumamos registrar como primeiro romance brasileiro, "A Moreninha", de Joaquim Manoel de Macedo.
O livro de Theresa é lindo. Sensível e corajoso, repleto de paixões líricas e fatais, inconformista, fez muito sucesso na época, tendo quatro edições, o que era muito raro. As mulheres em Portugal, até então, costumavam escrever apenas textos conventuais ou religiosos. É romance da maneira como concebemos hoje a palavra, uma narrativa em prosa, com personagens, seus diálogos e reflexões, descrições, conectivas de narração. Apresenta uma literatura corrompida pela relação impossível da Arte com o Bem e uma linguagem que se ressente do peso do moralismo doutrinário. Mas é elegante, ousado, pré-romântico, apesar de imitar os modelos clássicos greco-romanos e os seiscentistas franceses. Theresa rompe com o barroco e o castelhanismo e se mostra "estrangeirada", como seu irmão Mathias, o que era a vanguarda da época. Há um narrador onisciente que conta a história, mas em seguida o mesmo episódio é narrado com mais detalhes e impressões pelo personagem, como lembrança de sua última desventura.
Conta a história dos reis de Tebas que, com os filhos, partem numa esquadra para a ilha de Delos. Surpreendidos por uma tempestade, são atacados por dois navios argelinos. O rei, Diófanes, é aprisionado e vendido aos coríntios. O filho é morto. A mãe e a bela filha, Hemirena, ficam em Argos, separadas uma da outra. Hemirena se torna escrava de Anquísia, que, com ciúmes da princesa, a manda para o campo, na esperança de que o vento, o sol, a chuva estraguem sua beleza. O pastor Túrnio, irmão de Anquísia, se apaixona por Hemirena e deseja casar com ela. A irmã não permite e a vende à princesa de Atenas. O pastor, inconsolável, sem saber do destino de sua amada, enlouquece.
Em Atenas, com narrativas em lágrimas, Hemirena encanta sua senhora, Beraniza, que, ao descobrir as origens nobres da escrava, torna-se sua amiga e interlocutora, quando se sucedem diálogos entre as duas princesas repletos de noções de virtude. O príncipe Ibério, igualmente, sucumbe ao fascínio de Hemirena e deseja casar com ela, que recusa. Beraniza fica doente e morre. O príncipe torna Hemirena sua prisioneira. Mas, numa noite, Hemirena foge, "com vestido de homem, disposta com aquele fingimento a vencer os maiores assaltos de sua cruel fortuna".
Hemirena encontra um mendigo coberto de chagas e trava com ele um diálogo sobre as dores físicas e as morais, sobre as relações entre súditos e reis, sobre a inveja, a ingratidão, os homens e seus venenosos enganos. O mendigo é seu pai, o rei Diófanes, e Hemirena parte para não ser reconhecida. Depois encontra sua mãe, desmemoriada, numa caverna de pedras, onde a rainha vive entre feras. Ambas passam a viver com pastores, como mãe e filho. Hemirena encanta as pastoras, respondendo com inteligência a suas perguntas e com mais conselhos sobre o comportamento dos nobres e a virtude, sobre as mulheres, o casamento, os adornos, os efeitos do ócio e os da paixão.
A bela pastora Atília, entretanto, se apaixona por Hemirena, pensando tratar-se de um homem, motivo pelo qual a princesa e a rainha fogem, até Esparta, depois vão para Micenas e novamente para Corinto, numa triste peregrinação, e depois de mais viagens, discursos, diálogos, conselhos, prisões, naufrágios e novas paixões, a bela Hemirena retorna, com os pais, a Tebas, onde se realizam grandes festas para os soberanos. São 266 páginas, que terminam com uma ingenuidade tipicamente feminina, quando a autora diz que "sempre é vencedora a verdade, e que a formosura triunfa, quando é constante a virtude".
Dona Theresa Margarida, porém, passou os últimos anos de sua vida encarcerada no mosteiro de Ferreira, por ordem de seu inimigo, o marquês de Pombal, onde ela escreveu um longo poema épico-trágico, dividido em cinco prantos, para contar suas dores e tristezas. Seu livro caiu no esquecimento.

FONTES
Ernesto Ennes e Rui Bloem

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