São Paulo, domingo, 4 de fevereiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Os abismos do casamento

George Eliot decompõe mecanismo da paixão em "Middlemarch"

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Muito antes de os estudos feministas entrarem em voga na teoria literária, o ensaísta Gilbert Keith Chesterton escrevia, em seu "Victorian Age in Literature", que o mundo do romance inglês do século 19 era essencialmente feminino. Não é por acaso, dizia, que tantas mulheres -Charlotte e Emily Bront‰, Jane Austen, George Eliot- se sobressaem nas letras dessa época. Pois o romance vitoriano, segundo Chesterton, trata essencialmente da vida doméstica, do jogo das personalidades humanas na vida privada.
Seria o caso de dizer: do casamento, esse nec plus ultra do destino burguês. De Flaubert ("Madame Bovary") a Tolstoi ("Anna Karenina", "Guerra e Paz"), o romance do século 19 começa ou termina no casamento. "Casaram, e foram felizes para sempre". Ou "ela se casou, e foi infeliz a partir desse momento".
Chesterton considera George Eliot (pseudônimo de Mary Ann Evans, 1819-1880) o símbolo máximo da literatura vitoriana. "Era larguíssima, entretanto limitada. Não podia contentar-se senão com todo o cosmos, mas o cosmos com que se contentava era pequeno. É falso dizer que não tinha humor: mas havia alguma coisa que instintivamente não sorria nela."
Sobre Eliot e "Middlemarch", sua obra-prima, escrita em 1871, foram feitos sempre os maiores elogios. São tão amplos quanto é restrito o número de pessoas que leram a obra. "Um dos poucos romances ingleses escritos para adultos", disse Virginia Woolf. "A mulher mais inteligente do século", dizem muitos. Proust e Sartre adoravam George Eliot.
Li "Middlemarch" há alguns meses, e tornei-me de imediato um propagandista fanático desse livro. Mas se me perguntarem o que há de tão extraordinário assim nesse romance, não sei bem o que dizer. Sei que acredito totalmente na inteligência dessa escritora. Trata-se de algo de extraordinário, de capital.
Mas como demonstrar isso? Antes de tudo, é preciso dizer que um grande escritor não precisa necessariamente ser inteligente. Duvido um pouco, para não dizer bastante, que Balzac, Dickens ou até mesmo Tolstoi fossem inteligentes. Ou melhor, que tivessem o tipo de inteligência intelectual, analítica, perceptiva, teórica, que cabem mais ao ensaísta do que ao criador.
O extraordinário em George Eliot é que ela é uma grande criadora de personagens, uma romancista bastante boa na invenção de entrechos, situações, diálogos, e ao mesmo tempo um cérebro analítico de primeira ordem.
Há uma certa superstição hoje em dia, quando se fala em fazer romances. Dizem que é muito mais artístico e elegante deixar que o leitor tire suas próprias conclusões. Ou seja, o romancista transcreve um diálogo, sem comentários, e "tudo" está dito nas entrelinhas. A escola de Hemingway, que é, de algum modo, a radicalização da escola de Flaubert.
Trata-se de uma grande bobagem. George Eliot é uma autora que intervém e comenta todas as ações de seus personagens. Julga, avalia, defende, incrimina cada atitude apresentada em seu romance. As famosas intervenções de Stendhal no curso da narrativa são, para quem lê "Middlemarch", uma brincadeira de criança. Eliot não deixa as entrelinhas a cargo do leitor: ocupa-as com comentários diversos, extraordinários de sabedoria. Mas é preciso lembrar que esses comentários têm suas entrelinhas também.
Todas as pessoas sensatas da aldeia criticam a escolha de Dorothea. É o momento em que George Eliot intervém com um de seus comentários. Quem não terá considerado, pergunta, um gênio como John Milton um esquisitão? Quantas pessoas não consideraram Newton ou Leibniz verdadeiros idiotas? Dorothea, acreditando em Casaubon, não estaria fazendo a coisa certa? "Refletido numa colher, o rosto de Milton pareceria uma abóbora disforme". A opinião dos outros, das pessoas comuns, é de certo modo uma colher que distorce a realidade.
É assim que vemos a narradora do romance tomar partido em favor do casamento. Não se sabe ao certo se George Eliot está dizendo o que pensa, ou se está apenas reproduzindo o pensamento de Dorothea. Cada comentário da autora tem, como eu disse, suas entrelinhas. O transcurso do romance prova o quanto George Eliot estava escondendo o jogo.
A história de Dorothea e Casaubon é uma entre as muitas que compõem "Middlemarch". Há outro casamento infeliz, o do jovem e ambicioso médico Lydgate com a belíssima Rosamond Viney. O trecho do livro em que os dois se percebem apaixonados é maravilhoso. Comentários e mais comentários da narradora. Eliot nos mostra o mecanismo da paixão como realmente é: uma mistura de acasos e fatalidades, inclinações mútuas e acidentes felizes.
O leitor não pode desejar outra coisa senão o casamento de Lydgate com Rosamond. Mas a história desfaz as ilusões que a própria autora havia criado.
Nesse sentido, George Eliot é a romancista vitoriana por excelência. Alguém disse que, em seus romances, todos terminam tendo o que merecem. Não há personagens "bons" ou "maus", mas há um moralismo profundo e impressionante, que diz: "Veja bem o que você está fazendo da própria vida". Esse moralismo contrasta, todavia, com o moralismo da sociedade vigente; com as opiniões que fazem a nosso respeito, sempre incompletas e nebulosas. O jogo entre o que cada um pensa de si mesmo e o que os outros pensam que cada um é, o jogo dos mal-entendidos sobre o caráter de cada pessoa, constitui o maior interesse de "Middlemarch". Como nos enganamos! A nosso respeito e a respeito das outras pessoas! Essa análise infinita, que seria retomada por Proust, tem em George Eliot um mestre insuperável.

O QUE LER
"Middlemarch" pode ser comprado à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, tel. 011/285-4933, São Paulo)

Texto Anterior: Lições de sadismo feminino
Próximo Texto: O meio-dia e a meia-noite
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.