São Paulo, domingo, 4 de fevereiro de 1996
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O meio-dia e a meia-noite

STEPHEN KING
ESPECIAL PARA "NYT BOOK REVIEW"

O quanto o romance de suspense -subgênero "mulher acossada/mulher em perigo"- mudou nos últimos 130 anos? Bem, vejamos: durante o verão de 1992, escrevi um romance no qual uma mulher chamada Rose abandona seu marido violento, psicologicamente instável, e foge para outra cidade. Lá é acolhida num abrigo de mulheres e começa a construir uma nova vida. Lá encontra também um homem bem mais gentil, que se apaixona por ela. Enquanto tudo isso ocorre, seu obsessivo marido lhe sai à captura.
Em 1866, Louisa May Alcott escreveu "A Long Fatal Love Chase" (Uma Longa e Fatal Caçada Amorosa, lançado este mês no Brasil pela Best Seller), um romance no qual uma mulher chamada Rose abandona seu marido violento, psicologicamente instável, e foge para outra cidade. Lá é acolhida num abrigo de mulheres (um convento, na versão de Alcott) e começa a construir uma nova vida. Essa vida inclui um homem bem mais gentil, que se apaixona por ela. (O fato de ele ser um padre foi apenas um dos problemas enfrentados por Alcott com o tema de seu livro.) Enquanto tudo isso ocorre, seu obsessivo marido lhe sai à captura.
Há, é claro, várias diferenças entre esses dois livros, mas as semelhanças são espantosas. Como também as ironias. Uma delas é que, embora escrito 125 anos depois, o meu foi publicado primeiro, e numa tiragem de quase 2 milhões de cópias. Mereceu resenhas respeitosas (ainda que nem sempre favoráveis). A versão de Louisa May Alcott de sua Rose em fuga, por sua vez, nem chegou a ser publicada. "Gosto de livros de terror, se eles têm força", observa um personagem em "Caçada Amorosa". Essa não era, aparentemente, a opinião de nenhum dos Robert Brothers, os editores de Alcott em Boston.
Alcott era o principal sustento de sua família. Seu pai, Bronson, foi um transcendentalista da Nova Inglaterra bastante respeitado, mas que, sem nenhum tostão, não tinha "o menor talento para fazer dinheiro", segundo o diário de Alcott. Como resultado, a rejeição de seu romance calou fundo por razões além das óbvias, como o orgulho ferido ou o ego magoado: os Alcott precisavam urgentemente do dinheiro pelo qual o livro fora escrito. Alcott revisou-o sem nenhum pudor, retirando o máximo de partes picantes e abrandando o tom do que restara, mas o enredo central do livro -que Rosamond, durante um ano, vive como esposa de um homem com quem não é casada- era refratário a qualquer tipo de revisão.
Em sua introdução à coletânea dos thrillers de Alcott, "Louisa May Alcott Unmasked: Collected Thrillers" (Louisa May Alcott Desmascarada: Thrillers Completos, Northeastern University), Madeleine B. Stern recorre à distinção, proposta pelas críticas feministas, entre a realidade diurna e as fantasias de meia-noite de Alcott. Com a publicação negada durante tanto tempo, o romance de suspense de Alcott prova que, mesmo a mais comercial de nossas escritoras, cuja obra em pseudônimo só foi descoberta e identificada por meio de seu detalhados (e obsessivos, dirão alguns) livros contábeis, era essencialmente impotente diante de sua extraordinária imaginação: pelo menos nos anos de juventude, esse poder não a subjugava, mas lhe era submisso.
O livro é um maravilhoso entretenimento (Stern chama os contos de Alcott de leituras rápidas e de qualidade, o que vale também para "Caçada Amorosa"), e tende a confirmar a posição de Alcott como a mais articulada feminista de nosso país no século 19. Mas o romance, editado por Kent Bicknell, diretor de um externato em New Hampshire e colecionador inveterado, que adquiriu e editou o manuscrito de Alcott para restaurá-lo à sua forma original e mais sensacional, oferece talvez algo ainda mais valioso: uma visão fascinante de um intelecto dividido, ao mesmo tempo atraído por temas violentos e sexuais e envergonhado de seu próprio interesse.
"Uma Longa e Fatal Caçada Amorosa" foi a última e a mais longa daquilo que Elaine Showalter, em "Alternative Alcott" (Alcott Alternativa) -uma coletânea de ensaios, artigos e ficção de Louisa May Alcott que compõem um guia ideal para suas fantasias de meia-noite- chamou de histórias sensacionalistas. É uma história cheia de suspense e absolutamente encantadora, um cruzamento estranho mas não incompatível dos irmãos Grimm e V.C. Andrews. Desconfio que termina num tom mais sombrio do que o gosto da maioria dos editores modernos, mas em perfeita harmonia com qualquer manchete de jornal contemporâneo sobre a violência familiar, culminando em loucura e assassinato. Ao morrer por suas próprias mãos, Phillip toma em seus braços o cadáver encharcado de Rose e dá voz ao horripilante desfecho do romance: "Minha primeira -minha última- minha até no túmulo!". Estamos bem longe da radiante sensibilidade e do elevado tom moral de "Mulherzinhas" (Little Women).
"Caçada Amorosa" ou qualquer das outras "histórias sensacionalistas" são tão boas quanto "Mulherzinhas"? Acho que não. O editor de Alcott (e a própria Alcott) considerava "Mulherzinhas" um livro tedioso, e ambos ficaram surpresos quando ele decolou como um foguete, concedendo finalmente à autora a estabilidade financeira que ela tanto almejara ao longo de sua vida. A primeira regra da ficção de sucesso, hoje como em 1866 (data em que Alcott escreveu "Caçada Amorosa"), é "escrever o que você sabe". E, em "Mulherzinhas", foi exatamente o que fez a escritora.
Alcott parece ter sido uma mulher piamente convencional, ciosa de que o dever da mulher era sacrificar-se a si mesma e dar apoio irrestrito ao homem de sua vida. Mas, soterrado na parte criativa de sua natureza convencional (e talvez acalentado pelo próprio descaso de seu pai com a opinião pública), encontrava-se um filão insuspeitado de rebeldia.
A mulher que escreveu, em "Mulherzinhas", que "o homem taciturno, sentado entre os livros, ainda era o chefe da família, a consciência doméstica, âncora e alívio", foi também quem escreveu "que tolos são os homens!" e criou o terrível Phillip Tempest, que diz a Rose, em "Caçada Amorosa", quando finalmente decide despir sua própria máscara: "Aqui sou eu quem manda, minha vontade é lei, e a desobediência será punida sem piedade".
Mas se houve duas Louisa May Alcott, no final a versão diurna foi provavelmente a mais real das duas -isso se equacionarmos a "realidade" com os traços dominantes de uma pessoa.
A chave para a dicotomia talvez possa ser encontrada em "Mulherzinhas", em que o pedante e repulsivo professor Bhaer critica as histórias de suspense de Jo March em "The Spread Eagle" e "The Weekly Volcano": "Prefiro dar pólvora a meus filhos a fazê-los ler esse lixo", diz ele, e a própria Jo é forçada a concordar. São lixo, afirma ela de suas histórias. "Não consigo ler o que escrevo sem tornar-me terrivelmente envergonhada." E então ela pensa, assim como Alcott deve ter pensado mais de uma vez: "Quase gostaria de não ter nenhuma consciência; é tão inconveniente!". Tais reflexões são seguidas pela frase certamente mais funesta de "Mulherzinhas", a que termina com "e Jo tampou seu tinteiro à rolha".
Assim fez Louisa, pelo menos no que se refere às histórias de pavor, depois de "Uma Longa e Fatal Caçada Amorosa". Ela sustentou sua família à base de contos sensacionalistas durante dez anos, de 1857 a 1867, e então simplesmente parou. Para seus leitores, felizmente, ela reservara trabalhos que satisfariam tanto a eles quanto a seu próprio sentido moral repressivo. O desprezo para com os que liam os thrillers de sua autoria estendeu-se a si mesma, por tê-los escrito, e foi responsável pelo caráter tão tedioso de alguns de seus últimos contos moralizantes.
O pior de tudo, talvez ela tenha pensado, era o quanto apreciava sua profissão. Objetava que era pura questão prática (histórias "de mistério" são "mais fáceis de compor e mais bem pagas do que os contos"). Até certo ponto, isso pode ser verdade, mas o aspecto prático, isoladamente, não é capaz de explicar os cinco ou seis capítulos finais de "Uma Longa e Fatal Caçada Amorosa", nos quais a narradora parece delirar com o prazer de seu ato criativo.
Em "Mulherzinhas", Alcott escreveu de Jo March: "A cada semana ela se trancava em seu quarto, vestia seu avental e 'abandonava-se ao vórtice', como costumava dizer. (...) Sua família, durante esses períodos, mantinha certa distância, somente esgueirando furtivamente a cabeça na porta para perguntar, com interesse, 'o gênio está em brasa, Jo?' ". Depois de "Caçada Amorosa", o gênio continuou em brasa para Louisa May Alcott, mas jamais recobrou o alegre brilho primitivo. Pergunto-me que tipo de escritora ela teria sido, se fosse capaz de repelir o espírito malignamente convencional do professor Bhaer e levar seus thrillers tão a sério como o fazem hoje em dia suas editoras e intérpretes feministas.

Tradução de JOSÉ MARCOS MACEDO

O QUE LER
"Uma Longa e Fatal Caçada Amorosa", de Louisa May Alcott, foi lançado este mês no Brasil pela editora Best Seller. "Mulherzinhas" tem traduções no país publicadas pelas editoras Musa, Brasil-América, Paulinas e Ediouro. Esta lançou também "As Filhas do Dr. March" e "Um Colégio Diferente". Fonte: CBP (Catálogo Brasileiro de Publicações) e Livraria Nobel.

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