São Paulo, segunda-feira, 5 de fevereiro de 1996
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Um século de cinema

RICARDO MUSSE

Imagens
Número 5, agosto/dezembro de 1995
Unicamp, 122 págs.
R$ 17,00

Como não poderia deixar de ser, o último número da revista "Imagens" -que procura cobrir, de acordo com a amplitude sugerida no título, pintura, vídeo, cinema, fotografia e televisão- é inteiramente dedicado às comemorações dos 100 anos de cinema. Distante dos esvaziados modelos jornalísticos celebratórios que não hesitam em reduzir um século de filmes a uma lista dos "dez melhores", esse volume nos fornece uma visão geral dos modos como atualmente a crítica (brasileira, francesa e americana) se debruça sobre os filmes, os autores e a história do cinema.
Os franceses Jean-Louis Leutrat e Jacques Aumont, em claves distintas, refletem, num viés transcendental, sobre as maneiras e a própria possibilidade de se pensar a história do cinema. A partir do relato e da listagem das múltiplas associações possíveis entre os termos "história" e "cinema" (o cinema na história -e na sociedade-; a história -e a sociedade- no cinema, isto é, nos filmes; a história do cinema...), Leutrat sugere mais uma vertente dessa combinatória: utilizar as categorias "trans-históricas" de Gilles Deleuze como balizas para a pesquisa histórica. Nesse artigo, porém, pouco nos adianta acerca de como superar a dificuldade exposta no próprio enunciado do projeto. Se os resultados que espera alcançar se aproximam da análise que faz ali acerca da concepção de história dos filmes de Orson Welles, o seu projeto está mais perto do "trans" do que da objetividade histórica.
Jacques Aumont vale-se de um artifício (que leva demasiadamente a sério), a discussão das vicissitudes de uma pedagogia do cinema, para sugerir uma teoria do cinema. Ao salientar que "o cinema foi inventado para uma coisa, uma única: mostrar o mundo tal qual é" (pág. 23), Aumont não só defende -na esteira de Bazin- a vocação realista dessa arte, o que lhe permite repudiar as recentes tecnologias ilusionistas, mas também se compromete com uma visão essencialista -ainda que moldada sob tons históricos- do cinema.
Em contraposição às abstrações da "teoria francesa" do cinema, o artigo de Ismail Xavier desenvolve uma análise concreta e histórica da presença de elementos figurativos e alegóricos no sistema narrativo clássico do cinema americano, marcado pela continuidade. Tomando num extremo um filme menor de D. W. Griffith, "The White Rose" (1921), e no outro, "Forest Gump" (1994) de R. Zemeckis, Xavier mostra como a narração clássica predominante na ficção industrializada -tomada em longa duração- não prescinde da revitalização de gêneros tradicionais (no caso, o melodrama popular do século 19). O recurso à fórmula da "alegoria moral" e ao seu uso por Griffith possibilitam a Xavier explicar não só o modelo ficcional utilizado em "Forrest Gump", mas também a sua relação com o atual contexto americano.
A mesma preocupação em recorrer aos conhecimentos da história do cinema para explicar tendências do cinema atual é encontrada no artigo de Elvis Cesar Bonassa. A partir de uma reconstituição -esquemática e literal- das teses de "A Obra de Arte na Época de Sua Reprodutibilidade Técnica", Bonassa atualiza a posição de Walter Benjamin apontando dois modelos de cinema: um voltado para a "politização da arte" -e representado, segundo ele, por "Através das Oliveiras"- e o outro dedicado à "estetização da política" -o que seria o caso de "Pulp Fiction". Ressalvado o interesse polêmico, o artigo de Bonassa reitera o mito do "Benjamin profeta", aplicando -sem qualquer cuidado histórico- teses de 1936 a filmes de 1994.
A diferença de resultados, quando se aplicam as teses de "A Obra de Arte..." ao cinema que Benjamin efetivamente viu, pode ser notada no artigo de Tom Gunning, voltado para a análise do lugar do espectador no cinema das origens. Gunning (que já fora entrevistado por "Imagens" no nº 2) é um dos expoentes de uma geração de críticos norte-americanos que se dedicaram ao estudo da história do cinema antes da constituição e implantação do sistema narrativo clássico, deslocando o foco de interesse das análises textuais para o contexto de exibição que, segundo eles, estrutura a forma com que um filme se dirige ao público.
Tal cinema foi por ele batizado de "cinema de atrações", numa referência simultânea às tradicionais feiras populares e à estética de vanguarda (Eisenstein, mas também o choque benjaminiano). Seus estudos recuperam o papel -central no cinema até 1904- de imagens que "estimulam a curiosidade visual, despertam ou criam excitação, espanto ou assombro", imagens essas que continuam presentes seja na "moderna estética do espanto", seja na cultura de massa (no "Jornal Nacional" ou no "Aqui Agora"), e que Benjamin teorizou como algo correspondente às especificidades da vida moderna, como um sucedâneo da fragmentação e extinção da experiência.
O artigo de Rick Altman tematiza o cinema dos anos 10, isto é, a pouco estudada junção entre o cinema primitivo e o assim chamado sistema narrativo clássico. A dissociação inicial da indústria em esferas separadas: produção, distribuição e exibição, e criação, por parte do exibidor, de espetáculos sonoros distintos, gerou uma multiplicidade de modelos de recepção fílmica que só foram unificados com a verticalização da indústria (a submissão dos exibidores aos produtores) e com uma campanha bem-sucedida para padronizar o som.
Paulo Antônio Paranaguá -dentro do subgênero história da indústria- mostra os esforços de Hollywood (a confecção de filmes falados em espanhol, a distribuição de cópias dubladas etc) para manter e ampliar o seu lugar no mercado latino-americano durante a transição ao cinema falado.
Três autores são destacados. O brasileiro Alberto Cavalcanti, de quem se transcrevem duas entrevistas feitas na Europa. Orson Welles, cuja hostil recepção pelo mundo cinematográfico norte-americano é analisada por Jonathan Rosembaum. E Fritz Lang, cuja origem familiar é desvendada por Georges Sturm, num artigo de escasso interesse cinematográfico.
Sintomaticamente, apenas dois artigos tematizam o cinema brasileiro. Ambos em tom excessivamente pessoal e literário. Jean-Claude Bernardet contrapõe (e defende) o modelo ficcional da peça "O Livro de Jó" à ausência de construção dramática de "Carlota Joaquina". José Carlos Avellar defende a tese de que no Brasil -exceto durante o Cinema Novo- só se fez cinema de espectador (isto é, segundo o modelo criado por outros).

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