São Paulo, segunda-feira, 5 de fevereiro de 1996
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Socialismo e liberdade

PAUL SINGER

Semeando Democracia - A Trajetória do Socialismo Democrático no Brasil
Miracy Barbosa de Sousa Gustin e Margarida Luiza de Matos Vieira
Palesa, 420 págs.
R$ 30,00

Esta obra vem resgatar a história de uma das mais importantes formações de nossa esquerda, o Partido Socialista Brasileiro entre 1945 e 1965. A primeira parte do livro, de autoria de Miracy Gustin, recupera concretamente a história do Partido Socialista e a reproduz com grande riqueza de detalhes e notável abrangência analítica. A segunda parte, escrita por Margarida Vieira, levanta as principais posições programáticas e políticas do PSB e as compara com as de outras correntes, a liberal, a trabalhista e a comunista, para desta maneira delinear o que foi o projeto de cidadania sustentado pelos socialistas naquela quadra de nossa história.
Como o período de 1945-64 acabou com um golpe militar seguido por duas décadas de autoritarismo, ele tende a ser subestimado enquanto gerador de idéias e instituições ainda hoje influentes. Os mais superficiais o desdenham como o "período do populismo". E a maioria da gente à esquerda hoje tende a se considerar herdeira apenas de 1968, como se tudo o que se passou antes estivesse destituído de significado. As teses de Gustin e Vieira, muito bem enfeixadas neste livro, vêm mostrar que a história da democracia e do socialismo no Brasil é bem mais longa e rica e que a experiência democrática das duas décadas do pós-guerra deixou um saldo importante de concepções e idéias, que não por acaso compõem atualmente as plataformas das principais correntes partidárias do país.
É sempre estranho -prazeroso e frustrante ao mesmo tempo- ler uma história que a gente viveu, escrita por pessoas de geração posterior que se baseiam nos parcos registros escritos e em depoimentos dos sobreviventes. É a mesma estranheza de quem folheia um álbum de fotografias da família em companhia de filhos ou netos desejosos de saber quem foi este e que aconteceu com aquela. A gente conta, se esforça em trazer ao presente pessoas, acontecimentos e circunstâncias, mas nunca tem certeza do quanto nossas recordações encontram ressonância nas mentes mais jovens. Em relação a "Semeando Democracia", estou convicto de que as autoras foram extremamente felizes na seleção dos fatos e na interpretação dos mesmos. As restrições que vou fazer se devem apenas ao meu ponto de partida diferente, sem qualquer pretensão de superioridade.
A primeira parte, de relato histórico, carece a meu ver de maior profundidade no tempo, inclusive pelo deslocamento do capítulo 5, que se ocupa das origens do socialismo democrático em São Paulo, mas deveria, por isso, ter sido o primeiro. A inversão da ordem cronológica numa obra histórica tende a prejudicar o entendimento. O relato se inicia com a formação da Esquerda Democrática, em 1945, por ocasião do declínio do Estado Novo e da retomada da democracia, omitindo a história precedente das pessoas e grupos que formaram o partido, que dois anos depois assumiria a sigla de Partido Socialista Brasileiro. O capítulo 5 se restringe ao grupo de São Paulo e se limita aos anos imediatamente anteriores a 1945.
Acredito que teria sido útil apresentar um panorama da evolução da esquerda no Brasil, no mínimo desde a fundação do Partido Comunista do Brasil, em 1922, já que entre os criadores do PSB se encontravam antigos dirigentes, militantes e até fundadores do PCB, como João da Costa Pimenta. A história das dissidências do PCB, dos tenentistas da Revolução de 1930, do Partido Socialista Brasileiro que funcionou entre 1932 e 1937, do levante de 1935 e do posicionamento das várias correntes de esquerda perante Getúlio, sobretudo depois que o Brasil entra na Guerra Mundial ao lado da URSS e dos EUA, ajudariam a entender as mudanças de posicionamento dos socialistas em relação a outros agrupamentos de esquerda e populistas.
O fato aparentemente estranho é que o PSB, pelo menos até 1950, tendia a dar apoio à UDN, opondo-se nos pleitos eleitorais e nos sindicatos e movimentos populares tanto aos getulistas como aos prestistas. Isso deixa de ser tão estranho se se considera que os getulistas tinham traído a democracia em 1937 e os comunistas queriam a democracia apenas enquanto acumulavam forças para conquistar o poder. A originalidade do PSB era exatamente o compromisso total com a democracia, vista como condição e base do socialismo almejado. O lema do partido não por acaso era "Socialismo e Liberdade". Era lógico que sua tática fosse apoiar os que supostamente tinham o mesmo compromisso democrático, ou seja, a resistência ao Estado Novo que, em sua maioria, formara a UDN. Esta estava longe de ser a direita, em 1945-48; basta lembrar que os mandatos dos deputados comunistas e de Prestes no Senado foram cassados por uma maioria composta pelos parlamentares do PSD e do PTB, tendo a UDN se posicionado contra, embora parte de seus representantes tenha votado pela cassação.
"Semeando Democracia" capta muito bem a evolução do PSB ao longo do período: em 1950, rompe com a UDN e lança candidatos próprios, em 1955 ele ainda (por influência do janismo) apóia a candidatura de Juarez Távora, mas daí em diante se aproxima das outras correntes de esquerda, particularmente do PTB, integrando a ampla frente nacionalista-desenvolvimentista. É claro que, nesta evolução, certas posições programáticas do PSB vão-se alterando, como a análise na 2ª parte do livro acertadamente aponta. Faltou assinalar, a meu ver, que, muito mais do que o Partido Socialista, mudaram o PTB e o PCB. A grande guinada para a esquerda do getulismo começou em 1953, quando João Goulart foi chamado ao Ministério do Trabalho e se aproximou das novas lideranças sindicais que se inclinavam a favor do PCB ou (um pouco mais tarde) do PSB. Após o suicídio de Vargas e sob o enorme impacto do mesmo, a radicalização do PTB acelerou-se fortemente. Ao mesmo tempo, o Partido Comunista, que tinha feito oposição ao governo de Getúlio até o fim, mudou dramaticamente de postura e propôs aos "irmãos getulistas" uma aliança contra o golpe militar, então em curso, e pela preservação da democracia.
O período coberto por "Semeando Democracia" vivenciou intensa evolução da esquerda, em geral em direção às propostas formuladas inicialmente pelos socialistas. Só a título de exemplos, pode-se mencionar a formação das Ligas Camponesas sob a liderança do socialista Francisco Julião, que botou a reforma agrária na agenda política do país; e a desmoralização do stalinismo por efeito do Relatório Khruschov. Não por acaso, o PSB cresceu em influência mais do que em votos, a partir da segunda metade dos anos 50. No fim do período, pelo menos o chamado Grupo Autêntico do PTB estava muito próximo do PSB e sua provável fusão (que atrairia possivelmente a esquerda católica) poderia ter antecipado o que a fundação do PT apenas em 1980 viria proporcionar. O golpe militar adiou isso e muito mais por quase duas décadas.
O livro de Miracy Gustin e Margarida Vieira é uma contribuição preciosa para superar o desconhecimento do grande público, inclusive da intelectualidade jovem, de nossa história política recente. A formação da consciência política não pode prescindir da experiência histórica, sob pena de repetir erros e falhas pelas quais o povo brasileiro já pagou caro. Espero que outras obras, que também lançam luz sobre nossa história, venham enriquecer ainda mais a bibliografia disponível -para quem quer e precisa conhecê-la.

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