São Paulo, segunda-feira, 5 de fevereiro de 1996
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A originalidade dos gregos

HENRIQUE G. MURACHCO; DION D. MACEDO

HENRIQUE G. MURACHCO e DION D. MACEDO

O Despertar da Filosofia Grega
John Burnet
Tradução: Mauro Gama
Siciliano, 301 págs.
R$ 26,00

Após mais de cem anos, este clássico da historiografia inglesa sobre as origens da filosofia é finalmente oferecido ao leitor brasileiro. Tornado público pela primeira vez em 1892, pela Hollen Street Press, de Londres, o livro alcançou a quarta edição em 1930, dois anos após a morte de seu autor. E é nessa edição, sensivelmente reformulada em relação à primeira, que a Siciliano baseou-se para fazer a edição brasileira.
O livro de Burnet procura tematizar, mais uma vez entre tantas outras, a questão da origem da filosofia. Fundamentado no modelo positivista, Burnet, como sugere no título do livro, "Early Greek Philosophy", procura marcar a originalidade da filosofia grega em relação a quaisquer influências orientais, notadamente as do Egito e da Babilônia. Essa sugestão fica, contudo, obscurecida já no título da tradução brasileira.
A argumentação do livro, cuja discussão metodológica está contida na "Introdução", procura demonstrar que o período comumente conhecido como o da filosofia pré-socrática foi um período de ebulição do pensamento grego que, dando os seus primeiros passos, constituía-se autonomamente como projeto de razão ou, como queria Burnet, como uma "filosofia da natureza" (pág. 15). Essa afirmação é, de resto, bem ao gosto do século 19, ainda que Burnet reconheça a influência oriental no processo de transmissão das técnicas, da matemática, e também cite trechos de Clemente, Eusébio, Bailly e da "Encyclopédie" que confirmariam a influência oriental. Para ele, "esse preconceito contra a originalidade dos gregos... não provém de modernas pesquisas sobre as crenças dos povos antigos, pois estas nada têm desvendado no tocante à evidência de uma filosofia fenícia ou egípcia. É um mero resíduo da paixão alexandrina pela alegoria" (pág. 26).
Em outras palavras, não haveria relação entre a transmissão de técnicas e da civilização material e a transmissão da filosofia, pois, segundo Burnet, a analogia entre a herança oriental das técnicas e da filosofia é "um argumento capcioso, mas de modo nenhum conclusivo" (pág. 27). O próprio Burnet parece recuar nessa autonomia, ao reconhecer que o surgimento da filosofia não poderia ter-se realizado em completa independência, num momento em que a comunicação com o Egito e a Babilônia era mais fácil. Mas o que pode ser considerado um aparente recuo transforma-se imediatamente na partilha entre o interesse prático dos orientais e o interesse teórico dos gregos. É a partilha entre o gênio abstrato grego -que teria cunhado "todos os termos matemáticos" (pág. 29)- e a preocupação com problemas práticos dos egípcios, tais como o cálculo das "medidas de cereal e fruta, a divisão de um número de medidas entre um dado número de pessoas, o número de pães ou jarros de cerveja que certas medidas renderão, e os salários devidos aos trabalhadores por determinada tarefa" (pág. 28), como o mostraria o papiro Rhind, do Museu Britânico.
Trata-se de um esforço em delimitar simultaneamente o alcance do aparato técnico e de conhecimento dos orientais, "pois não há nenhuma evidência de que eles tenham tentado explicar o que viam além da forma mais grosseira" (pág. 31) e das "pesquisas científicas" desenvolvidas pelos gregos, esforço que culmina em mostrar que os primeiros cosmólogos (como Burnet denomina os pré-socráticos) "principiaram por conta própria e em completa independência das observações babilônias" (pág. 31), por não terem pensado nos planetas e nas estrelas fixas. Essa interpretação é coroada pela afirmação segundo a qual "os gregos não receberam do Oriente nem sua filosofia nem sua ciência" (pág. 31).
Há, no horizonte hermenêutico no qual se inscreve essa problemática tão complexa e tão rica, linhas de interpretação divergentes a polemizar entre si, dando a impressão de ser, na verdade, mais do que simples interpretações conflitantes, verdadeiras linhas de força opostas que se digladiam numa arena ou cosmovisões ("Weltanschauung") que sustentam e informam análises e métodos.
O que cumpre discutir e pensar, nesse horizonte vasto e complexo, é o papel que representaram os orientais no cenário arcaico (que remete à idéia de princípio inaugural, "arkhé") onde se constituiu esse jogo de reflexão e essa "pulsão de linguagem" que é a filosofia. Não se trata, como pode parecer a uma leitura ingênua, de explicar os gregos pelos orientais, ou de reduzir o espírito grego à justaposição de influências, ou mesmo de negar a inteligência dos povos orientais para afirmar o caráter distintivo dos gregos e, por extensão, do Ocidente. Mas, contra leituras simplistas e reducionistas, procurar restituir a essa busca de origens toda a sua complexidade. É disso que se trata, por certo.
O que fundamenta as interpretações de Burnet é um certo viés positivista que não só concebe a absoluta originalidade do gênio grego (concepção que, de tanto ser repetida, corre o risco de perder toda a sua significação, se não for de novo coerente e pacientemente refletida pela historiografia), mas que transforma essa originalidade em preparação ao pleno desenvolvimento da ciência no 19. O próprio Burnet não hesita em afirmar que a primeira reflexão grega era, antes de tudo, uma cosmologia fundada numa filosofia natural e que os gregos seguiram o método pelo qual "todo progresso científico consiste no avanço de uma hipótese menos adequada para outra mais adequada" (págs. 34-35). Essa afirmação, traduzida em outros termos, diz "simplesmente" que há um constante aperfeiçoamento do método rumo a uma objetividade, cujos depositários seriam os senhores da ciência e do conhecimento do século 19.
Há, no livro de Burnet, um sistema de partilha, na qual uma categoria contém e articula-se com a outra, que pode assim ser esquematizada e estabelecida: de uma lado, o interesse prático dos orientais, de outro, o interesse teórico-especulativo dos gregos; de uma lado uma "forma grosseira de explicação" (pág. 31) da natureza, de outro, um avanço constante rumo a uma objetividade cada vez maior e, "last but not least", a já requentada fórmula da passagem do mito à razão. E é esse último aspecto que permite a Burnet, visivelmente instrumentalizando a crítica de Platão à antropomorfização dos deuses pelos poetas, em "A República", marcar a ruptura entre mito e razão, entre mito e filosofia.
É uma pena que um livro que tem por trás de si um debate filosófico tão importante, e com um impressionante atraso de publicação, tenha sido oferecido ao leitor com algumas falhas que talvez pudessem ter sido evitadas. A própria tradução deixa muito a desejar, pois é mais uma transcrição do que uma tradução. O tradutor se mantém preso à estrutura e à ordem das frases em inglês, o que causa um certo desconforto no leitor de língua portuguesa, cuja estrutura e ordem são diferentes. É uma espécie de leitura disléxica em que se pensa em inglês e lê-se em português. Como esta pérola, na pág. 15: "Nem mesmo foram essas necessidades sentidas todas de uma vez" ("Nor were those needs felt all at once").
Em primeiro lugar, todas as citações, que no original estão em grego e em latim, seja nas notas ou no corpo do texto, foram mantidas nas línguas de origem. A não tradução de sequer uma das passagens em grego ou latim é grave. Se o livro visa aos estudantes ou especialistas em filosofia antiga, deveria levar-se em conta que, embora haja avanços significativos de quantidade e qualidade dos cursos de filosofia grega no Brasil, muitos deles ainda não têm um professor de língua grega e são obrigados a trabalhar com traduções inglesas, francesas, italianas ou espanholas, todas interpretativas.
Ora, os cursos de língua grega da USP, UFRJ e Unesp têm produzido um número razoável de helenistas, que poderiam ocupar esses postos. Para não falar dos cursos extracurriculares de língua grega da Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas e Letras da USP. As passagens citadas poderiam ter sido mantidas no original, mas que a editora providenciasse um tradutor recrutado nesses cursos.
Há muitas palavras em grego que não estão escritas corretamente, o que nos leva a crer que não foram suficientemente cotejadas com o original.
Na pág. 22, a frase "o nome physis era dado ao perpétuo algo de que o mundo era feito" não é coerente com o original e, ainda na mesma página, a palavra physis, feminina, teve o seu gênero mudado para "um physis". Traduziu-se "the accident that Empedokles" por "casualidade de Empédocles" (pág. 23, nota 2); "they were well aware of their stations and retrograde movements" por "ficaram bem inteirados de suas paradas e deslocamentos retrógrados" (pág. 30); "rules of mensuration" por "regras de maldição" (pág. 31); a conhecida expressão "theorethikós Bios" foi traduzida como "vida do espectador" (pág. 32, nota 2), acompanhando servilmente a solução "the life of the spectator" do original, mesmo estando difundida no nosso vocabulário filosófico a noção de vida contemplativa ou teorética. Menciona-se ora o "Estadista" (!?), ora o "Politicus", de Platão, deixando-se de normatizar o título e ignorando-se que o diálogo "Político" é bastante conhecido.
Os fragmentos dos pré-socráticos foram traduzidos a partir do inglês, numa aventura cega e de segunda mão. No fragmento 84 de Heráclito optou-se por manter "posset" da sentença "até a posset se separa se não é mexida" em inglês (!?), como se Heráclito houvesse escrito nessa língua. A edição brasileira poderia ter-se valido da tradução dos "Pensadores": "Também o 'cyceon' se decompõe, se não for agitado".
Afora outros problemas, que um leitor atento nota rapidamente, há uma citação equívoca da "Metafísica" de Aristóteles, na pág. 286, nota 5, equívoco proveniente do original inglês que, mesmo na quarta edição, não foi sanado. Aristóteles, na "Metafísica", livro D e não no G indicado, conta que Crátilo, tendo levado às últimas consequências a sentença "em rio não se pode entrar duas vezes no mesmo" (fr. 91), de Heráclito, achava que não era possível entrar nem sequer uma única vez, recusando-se até a falar, apenas apontando com o dedo.

HENRIQUE GRACIANO MURACHCO é professor de língua grega da USP, traduziu o "Íon", de Platão (revista "Educação e Filosofia", nºs. 10 e 11, Universidade Federal de Uberlândia), o "Diálogo dos Mortos", de Luciano (no prelo) e a "Gramática de Port-Royal", de Arnauld e Lancelot (Martins Fontes), com Bruno Fregni Bassetto

DION DAVI MACEDO é mestrando em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica-SP, com um estudo sobre a linguagem em Platão, traduziu "O Sublime Tecnológico", de Mario Costa (Experimento) e colaborou na tradução de "A Carne, a Morte e o Diabo", de Mario Praz, (no prelo, Ed. Unicamp), realizada por Philadelpho Menezes

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