São Paulo, segunda-feira, 5 de fevereiro de 1996
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Uma triste história

JONATAS BATISTA NETO

O Último dos Médicis
Dominique Fernandez
Tradução: José Augusto Carvalho
Record, 335 págs.
R$ 24,90

Dominique Fernandez é um jovem de 60 anos, magro, esbelto como um adolescente. Autor de uma tese sobre Pavese ("O Fracasso de Pavese"), o consagrado escritor italiano que se suicidou em 1950, Dominique enveredou também pela criação literária, explorando aí, quase sempre, a grande paixão da sua vida: a exuberante cultura italiana.
Embora sendo francês, ele considera Nápoles sua verdadeira pátria e já teve uma casa na Sicília. Agora reside parte do ano no sul da França, perto do mar, intercalando a redação dos seus romances com algumas braçadas no oceano. Para concentrar-se nos seus personagens e no seu texto, senta-se, desde o nascer do Sol, face a uma mesa colocada junto a uma parede sem janelas.
Dominique sente-se atraído por personagens equívocos ou, pelo menos, ambíguos. Assim é que ele já produziu uma vida romanceada de Pasolini ("Na Mão do Anjo"), na qual, entre outros, aparece Maria Callas como personagem, fazendo um curioso discurso, inteiramente em oposição ao que conhecemos de suas convicções. Dificilmente a diva grega, que chegou a alimentar esperanças de unir-se ao autor de "Teorema", se mostraria compreensiva para com as inclinações sexuais do cineasta. Lembremos que Maria era, como definiu Zeffirelli, "uma estranha mistura de genialidade artística com mediocridade pequeno-burguesa".
Além disso, escreveu também "Porporino", a história de um "castrato" imaginário atuando em Nápoles no século 18, em pleno apogeu da ópera barroca. O Porporino em questão nunca existiu, mas Dominique Fernandez se valeu dessa figura de ficção central para recompor todo o quadro da ópera napolitana do tempo, dominada pelos cantores castrados, verdadeiros protagonistas líricos de um século em que o tenor ainda não se havia afirmado como parceiro natural do soprano.
É bem provável que ele seja hoje um dos maiores conhecedores de arte barroca de todo o planeta. Recentemente, em colaboração com o amigo e fotógrafo Ferrante Ferranti, produziu um álbum sobre os monumentos do período, englobando diversas edificações religiosas num arco que se estende da Calábria à Rússia.
Dominique Fernandez é, portanto, um especialista da cultura italiana do período moderno, anterior à Revolução Francesa, além de romancista naturalmente, atuando no difícil terreno do romance histórico.
Não é de admirar-se que ele tenha se interessado por João Gastão, esse governante patético que encerra a dinastia dos Médicis. Filho de Cosme 3º (1642-1723), João teve por mãe uma prima de Luís 14, uma mulher de temperamento tão agitado que nem o diabo gostaria de tê-la por perto. Marguerite-Louise namorou todos os criados do palácio, gastou uma enorme fortuna extorquida pouco a pouco do marido e, depois da separação, já na França, entregou-se apaixonadamente aos prazeres do jogo. Num curto período em que foi confinada ao mosteiro de Montmartre, chegou a perseguir a abadessa com uma pistola na mão porque esta ousara criticar-lhe a conduta.
Bêbado e pederasta, João Gastão era exatamente o oposto do que se deveria esperar de um governante florentino nesse período. Mesmo porque Florença, no século 18, se encontrava muito longe do que fora no século 15, nos áureos tempos de Cosme, o Antigo, e de Lourenço, o Magnífico. Era uma cidade pobre, sombria, triste e sem esperança, descrita pelos viajantes estrangeiros como repleta de mendigos, vagabundos e monges, estes últimos formando, com frequência, sinistros cortejos pelas ruas malconservadas. A população, segundo Gilbert Burnet, bispo de Salisbury, se reduzira muito e talvez já não chegasse nem mesmo a 50 mil pessoas, enquanto o empobrecimento era geral: o Estado estava quase falido e as famílias nobres, que descendiam de aristocratas outrora bastante ricos, se encontravam praticamente sem recursos.
João Gastão assume a liderança dessa lúgubre cidade aos 52 anos. A princípio, adota algumas medidas sensatas, como a redução dos altos tributos, a suspensão das leis contra os judeus e o restabelecimento da liberdade de investigação por parte de cientistas e filósofos submetidos a diversas restrições obscurantistas durante o governo de seu pai. A seguir, entretanto, entrega-se à preguiça e ao prazer sob a proteção do favorito Juliano Dami, que lhe fornece os serviços dos "ruspanti" (garotos de programa), cujo nome provinha de "ruspi", as moedas com que eram pagos. Em 1731, o número dos "ruspanti" recrutados para as suas orgias chegou a 400! Quando insatisfeitos por alguma razão, promoviam saques pela cidade e desordens nos jardins de Boboli.
Nos últimos anos de sua vida, João Gastão pouco saía do palácio. Às vezes só o fazia para desmentir boatos de seu falecimento. Nessas ocasiões, embriagava-se previamente, gritava obscenidades para os passantes e vomitava em público.
Antes da sua morte, ocorrida em julho de 1737, as potências européias já haviam indicado como sucessor o marido de Maria Teresa, de modo que, a partir do evento, Florença se tornou parte do Império Austríaco. Uma derradeira representante da família, a beata e sombria Ana Maria, irmã de João Gastão, foi autorizada a viver no Palácio Petti até 1743, ano em que os Médicis iriam desaparecer definitivamente.
Esta é a história florentina que Dominique Fernandez escolheu para nos contar, enfocando-a pelas memórias imaginárias de um suposto médico da família. É uma triste história, não há dúvida, mas que deverá interessar aos amantes da Itália, aos estudiosos de psicologia e aos que se sentem fascinados pelas decadências.

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