São Paulo, segunda-feira, 5 de fevereiro de 1996
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O artista de Baudelaire

LEON KOSSOVITCH

Caricaturas
Honoré Daumier
Prefácio: Charles Baudelaire
Apresentação: Dorothé de Bruchard
Tradução: Eloísa Silveira Vieira e Sueli Bueno Silva
Paraula, 80 págs.
R$ 20,00

A publicação da seleção de litografias de Daumier está bem cuidada documentalmente, pois anexa "As Peras", série de metamorfoses de Luís Felipe feita por Philipot, quando este responde, como a maior parte dos caricaturistas de seu tempo, a processo judicial em que muitos, como o próprio Daumier, são condenados: multa e prisão. Para o pagamento das multas, estabelece-se uma circulação de gravuras arrecadante, que as separa de seu suporte previsto, o jornal, como "Charivari".
A apresentadora de "Honoré Daumier - Caricaturas", Dorothée de Bruchard, lança com reveladora concisão traços biográficos do artista, porquanto encarrega Baudelaire de introdução mais alentada. O texto de Baudelaire opera à guisa de prefácio, sendo excerto de "Alguns Caricaturistas Franceses", publicado no jornal "Le Présent" em 1857. Traduzido acuradamente, o excerto é ladeado do original. A edição bilíngue e a qualidade do papel limitam a suposição de que a brochura visa ao presente leitor espantado com a desistência que se alastra com a ofensiva do neoliberalismo vigente, a calar, com a mirabolante unanimidade dos meios de comunicação, o desejo de ver aposentados os prepostos, ora no governo, da ideologia que propaga um fatalismo -a "modernização"-, dejeto de outro mito há muito rejeitado, o darwinismo que, hoje, mordendo o emprego, enlouquecendo as pessoas, concede sobrevida apenas aos que ele mesmo produz como aptos para jogar em seu cassino.
É felicíssima a conjugação de Daumier e Baudelaire; este lhe divide a caricatura em dois tempos, que são, basicamente, os de dois gêneros. O primeiro, concebido como sátira de Menipo, é exemplificado, no livro, por "Gargantua: Luís Felipe e os Impostos", de 1831, litografia panfletária, dominada pela cólera política; o segundo, entendido como comédia de Molière, explicita-se em "Esboços de Expressões", de 1838. Baudelaire interpreta politicamente a substituição da sátira pela comédia em Daumier: extenuados pela perseguição do rei, os caricaturistas vão atrás do novo. Mas a distinção dos dois gêneros não é simples, porquanto nos anos mais sangrentos da repressão, no pandemônio dos caricaturistas em guerra contra o Estado de Luís Felipe, outro gênero opera: "Rua Transnonain", de 1834, põe em evidência, não o gênero baixo, mas o alto, história. Contemporânea da caricatura satírica, a estampa constitui-se, segundo Baudelaire, como "história, trivial e terrível realidade".
Sátira e história, que nas preceptivas pictóricas dos séculos 17 e 18 são gêneros que se hierarquizam como ínfimo e supremo, têm a mesma efetuação emotiva, com a diferença de que só aquela faz rir, embora com dor. Há, pois, dois horrores em "Rua Transnonain", o de Daumier e o de Baudelaire, cuja descrição minudente da cena é dirigida pela comoção; quanto à litografia de Daumier, nela não se ignora o horror de Goya, que Manet repropõe parodicamente. Como estampa e descrição, "Rua Transnonain" foge às doutrinas de pintura precedentes: como história, traz o "trivial" e a "terrível realidade", alegorizando, em Baudelaire "simbolizando", a violência de Luís Felipe; a realidade produz-se como descrição, tanto no gravador quanto no seu biógrafo, com a comoção sendo em ambos efeito do excesso do descrito. A história é antiépica, denunciando-se o Pera como algoz do proletário na subversão das doutrinas precedentes dos gêneros, não só como ruptura do corpo político, mas como exclusão do rei da cena por inverossímil gráfico.
Enquanto em Daumier os notáveis do reino compõem galeria de retratos, pois a carga cômica não os desfigura, a figuração do rei, sendo satírica, não o admite na mesma galeria como deformidade sem semelhança no cruzamento das duas acepções de pera, tolice e forma da fruta. Os dois artistas põem o Pera a perseguir a Liberdade, simbolizada pela donzela de barrete frígio. No que toca à donzela, Baudelaire elogia a arte de Daumier por sua encenação cômica da antiguidade de versão acadêmica: "Quem nos libertará dos gregos e romanos?" aplica-se à série cômica "A História Antiga", fugindo a donzela à estilização convencional.
Como nos símbolos da liberdade e do rei não cabe o retrato, é na sátira, não na comédia, que o símbolo se emancipa: como na defesa de Philipon, que insiste na indiscernibilidade, quanto à semelhança, dos quatro desenhos repassados na ordem que começa com o retrato de Luís Felipe e acaba na pera, o símbolo constitui-se como "analogia complacente", assim, como suspensão da semelhança e como elemento da "gíria plástica" que o leitor de jornal parisiense entende imediatamente. Ambiguidade da forma, a pera inteligível estende-se ao abacaxi: forma reiterável, este figuraria o supremo magistrado de fala sumarenta; mas o pequi, não como forma, como efeito, é mais verossímil neste trópico, ferindo os espinhos invisíveis do caroço os que se deixam levar pelo paladar da polpa. Temperando o frango no Planalto Central, o pequi passou a exalar o seu aroma sob os viadutos recém-enriquecidos no consumo desbragado do galináceo, segundo as alvissareiras estatísticas de 1995.
Na comédia, a identificação das estampas é imediata, operante a semelhança; por isso, para Baudelaire, as legendas são redundantes, quando não impeditivas do sentido. A semelhança na comédia requer a observância do gênero, não fugindo Daumier da natureza, nem caindo no excesso, que o lançaria na sátira. Não é, todavia, a semelhança genérica que lhe torna preciso o desenho e o sentido, é o colorismo do traço. "Involuntário", assim, despreconcebido, o traço de Daumier torna sensível o figurado, logo, o sentido que dele pende: Baudelaire é aqui alcançado por vestígios das preceptivas anteriores. Colorista, o traço de Daumier é sensível, portanto, universal, tese defendida por preceptistas franceses dos fins do século 17 e do 18 em seu ataque à Academia. Conjugando o exato e o despreconcebido -lembre-se que o desenho é conceito fundante das artes nas academias desde o século 16-, Daumier é o artista de Baudelaire.

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