São Paulo, segunda-feira, 5 de fevereiro de 1996
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Uma pedagogia da literatura

TELÊ ANCONA LOPEZ

Literatura Brasileira dos Primeiros Cronistas aos Últimos Românticos
Luiz Roncari
Edusp/FDT, 640 págs.
R$ 52,00

Apoiado em um projeto moderno, quinhentistas, barrocos, árcades, românticos têm agora textos reunidos e estudados em um livro didático apoiado em um projeto moderno. Esta "Literatura Brasileira dos Primeiros Cronistas aos Últimos Românticos", trabalho de fôlego de Luiz Roncari, pode ser considerada legítima seguidora da "Formação da Literatura Brasileira", de Antonio Candido, quanto a seu escopo de procurar "um ponto de confluência fecundo entre o estudo literário e a reflexão sobre o Brasil", em autores e textos que reputa fundamentais. Dentro da única solicitação feita a seu autor pela Editora da Universidade de São Paulo que, neste projeto, se associou à Fundação para o Desenvolvimento da Educação, "de mudar o paradigma do livro didático (...) numa esfera em que nem sempre foram os interesses educativos e formativos que predominaram", Roncari acreditou na superação de barreiras, dando abrigo a exigências que reformulações futuras, no terreno da educação, poderão objetivar. Baniu o propósito de informar à exaustão -um livro "extensivo"-, privilegiando a intenção de oferecer ao leitor, em um livro "intensivo", uma possibilidade de entrar verdadeiramente em contato com autores e textos.
Professor de literatura brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e romancista, Luiz Roncari concretizou uma iniciação ao estudo de nossa literatura, dirigida especialmente a professores e alunos do segundo grau e a vestibulandos, volume cujas qualidades devem conquistar também leitores fora da escola. Visando à formação, não quer somente suscitar o gosto pela leitura, mas fazer com que seu interlocutor se veja respeitado como sujeito, que se sinta capaz de pensar a literatura, o que significa permitir o aparecimento da dúvida e do desejo de responder, pela pesquisa, às próprias indagações. Roncari sabe que a riqueza do conteúdo e que a precisão na linguagem do crítico não excluem a simplicidade. Escreve com gosto, combinando seriedade e humor. É o erudito, o historiador que não se separa do crítico da literatura, dono de sólidas bases teóricas, e do crítico da cultura, para compreender as relações do fenômeno literário com a vida social, explorar a interdisciplinaridade. Seu método mostra-se rico, maduro no aprofundamento de tudo que, em cada autor e em cada escola, considera relevante, sem dosagem predeterminada, dando aqui mais espaço para a análise da estrutura e do estilo dos textos, demorando-se ali ao exame de problemas éticos e estéticos que fazem parte da literatura ou de determinadas épocas na história, essenciais para se compreender os elementos constitutivos de uma obra.
No livro que divide em quatro partes ou capítulos voltados para os grandes períodos literários dos séculos 16 ao 19, o autor harmoniza o ensaio, a antologia e o trabalho didático cuidadoso. Cada capítulo recebe um ensaio introdutório e, depois de cada texto escolhido com pertinência, sempre em edições recomendadas, transcrito com fidelidade, o comentário e a análise de cunho literário esmiúçam com argúcia e sensibilidade o estilo, a estrutura, as características de um movimento etc. Em sua análise e interpretação, Roncari junta à sua a voz da melhor crítica do presente e do passado: Varnhargen, José Verissimo, Jayme Cortesão, Lúcia Miguel Pereira, Sérgio Buarque de Holanda, Anatol Rosenfeld, Antonio Candido, Bosi e tantos outros.
Pesquisador ambicioso, como devem ser os pesquisadores, desencava e distribui a mancheias tudo o que pôde ligar aos autores e textos selecionados, matéria que não se restringe à literatura. Multiplica notas que reforçam pontos, sugerem leituras, encontram correspondências vocabulares atuais para expressões de época hoje obscuras, para formas desataviadas que a sátira de Gregório emprega, como "zote" ("pateta") ou "frete" ("de flertar, seduzir"); organiza um glossário final. Incorpora riquíssima e requintada iconografia. O fac-símile da carta de Caminha, mapas, capas de revistas históricas, foto do púlpito de entalhe barroco onde pregou Vieira, gravuras, telas, desenhos de artistas consagrados ou pouco conhecidos (como os interessantíssimos Carlos Julião e Miguel Dutra), do país e fora dele, contemporâneos dos textos ou posteriores a eles, ilustram o livro. Os traços e tintas dos artistas oferecem, dentro de uma segunda linguagem (que pode ser objeto de análise em classe, dada a qualidade da reprodução gráfica, na maioria dos casos), o compartilhar de temas e assuntos da literatura no decorrer dos quatro séculos a que a antologia se reporta. Pena que datas, técnicas e dimensões das obras levantadas em tão minuciosa garimpagem não apareçam no arrolamento de obras e artistas, na "Fonte Iconográfica". Fica a sugestão para uma segunda tiragem.
A aproximação de textos literários a imagens do artista plástico envolve uma proposta, o caminho deste crítico e historiador. Caminho novo, matreiramente anunciado, no topo da página de abertura do volume, pelos versinhos de Roncari -"Para que este livro tenha também um traço inovador/ tomo como epígrafe as palavras do pintor"-, seguidos, não de palavras e sim do delicioso quadro de Guignard "Os Noivos"... O verbo se faz imagem e metáfora. O par solene em sua simplicidade, abençoado pelo Sagrado Coração e pela bandeira brasileira, posa para fotógrafo e para um pintor que põe quadro do gosto do popular dentro de seu quadro, que se debruça sobre nosso Brasil, nele captando alto significado, enquanto o autor do volume deixa ali camuflada a verdadeira epígrafe que vale a declaração de um compromisso expresso pelo ícone padroeiro, levando particularmente em conta estes Brasis.
Quatro capítulos, portanto, perfazem o livro: 1. "O Homem e a Terra", para dar conta dos cronistas do século 16 e da obra de José de Anchieta; 2. "A Praça e o Púlpito", focalizando o barroco no Brasil colonial, Gregório de Matos e Vieira; 3. "A Poesia do Século de Ouro", dedicado a Basílio da Gama e seu magnífico "Uraguai", a Durão, assim como aos árcades e ao anseio de independência; 4. "O Romântico Brasileiro", capítulo extenso, atento à busca de uma identidade literária na poesia, no romance e no teatro.
Ao movimentar tão vasto arsenal a serviço da análise e da interpretação, Roncari firma a idéia de que o trabalho da história e da crítica na literatura expande-se em correlações, alimenta-se de estudos em outras áreas. Sai do texto literário todas as vezes em que o mesmo texto isso lhe impõe, para melhor se ver desvendado.
Eis um bom exemplo dessa capacidade de um método que admite horizontes mais largos: a parcela dedicada a Gândavo, autor do "Tratado da Terra e da Gente do Brasil". Tomando excerto que mereceria aplausos de Oswald de Andrade -"Da Condição e Costumes dos Índios da Terra"-, a análise, para iluminar a dialética da narração/informação ali presente, reporta-se à história, à filosofia e à antropologia, no anseio de melhor captar, na representação literária, os contatos inter-raciais e interculturais. Recorre, pois, ao enfoque do ritual antropofágico por parte da arte e da filosofia, no mesmo século 16 marcado pela Inquisição, quando o alarde dessa prática dos indígenas assusta (ou excita?) a Europa. Reproduz duas gravuras de Theodore de Bry, nas quais os tupinambás têm cara de europeu; torna presentes as idéias de Montaigne e associa à visão dos visitantes das terras descobertas as conclusões da antropologia do século 20.
Para analisar o tratamento literário do índio por parte de Gândavo, o crítico desenvolve a comparação entre o "Tratado" e a "Carta" de Caminha (certas soluções de ambos serão muito mais tarde revisitadas por nossos modernistas); vai paralelamente até os fundamentos da mentalidade dos portugueses, até a Europa quinhentista em geral. Acusará, então, em Pero Gândavo, a observação penetrante, o poder de emocionar no modo com que "encena um sacrifício", traços de valor literário, convivendo e mesmo minando o julgamento preconceituoso e as duras cobranças do cristão da Contra-Reforma. Essas, apesar de não obstarem o registro cuidadoso, refletem a aceitação tácita de uma visão eurocêntrica que se viu quebrada -é preciso dar a conhecer- pelo descortino humanista de Montaigne, filósofo que se comparou com o "outro" e pôde endereçar acerba censura ao próprio tempo, quando justapõe o ritual antropofágico dos índios às execuções e torturas ordenadas pelos tribunais do Santo Ofício na Península Ibérica.
As palavras de Montaigne (na tradução de Sérgio Milliet) entram então na página para sublinhar a contradição: "Não me parece excessivo julgar bárbaros tais atos de crueldade, mas que o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira acerca dos nossos. Estimo que é mais bárbaro comer um homem vivo do que o comer depois de morto; e é pior esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos, ou entregá-lo a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé, como não somente lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos conterrâneos; e isso em verdade é bem mais grave que assar e comer um homem previamente executado" (págs. 57-58).
Ajudam o leitor a cumprir, junto do crítico, um itinerário complexo que alcançará as explicações antropológicas de Alfred Métraux, em "A Religião dos Tupinambás": "Se tal vem sendo a significação dada à antropofagia (a de vingança de sangue contra inimigos), não menos certo é ter esse costume, no começo e nos princípios do século 16, um caráter mais elevado e mais profundo, conforme o testemunha a multiplicidade dos ritos observados por essa época. O canibalismo tem sido, frequentes vezes, considerado como uma prática exclusivamente destinada a aumentar a força vital daqueles que a praticam, ou, pelo menos, um processo capaz de permitir a aquisição de determinadas qualidades. Os tupinambás não permaneceram estranhos a tal concepção, como indica o fato de os velhos, isto é, indivíduos cujo corpo necessita de uma carga de energias novas, serem sempre tidos como os mais particularmente ávidos de carne humana". (pág. 60). O estudante pode agora lidar melhor com a visão arrogante de Gândavo que coloca os índios no plano da bestialidade. No âmbito do diálogo entre disciplinas, entre séculos e períodos literários aprendido no livro, terá gosto em comparar, por exemplo, no mesmo volume, a representação de Theodore de Bry e índios vistos por Eckhout ou J. Lips e M. Wied-Neuvied.
Observando pontos de vista, saberá que, além dos que se comparam com o "outro", dentro de qualquer propósito, haverá aqueles que se colocarão na perspectiva do "outro" ou no lugar do "outro" para observarem a si mesmos, pois o crítico tem o cuidado de, na esfera da literatura, não isolar cada período. Avançará então até os modernistas, principalmente Mário de Andrade em "Macunaíma", quando o outro não é apenas o índio. Poderá melhor distinguir os planos em Santa Rita Durão e acompanhar os caminhos da poesia de Gonçalves Dias que, quanto à representação do índio, a que Roncari acrescenta a do mestiço e do escravo negro, ultrapassa, segundo Lúcia Miguel Pereira, os estereótipos do romantismo.
Nos quatro capítulos que o constituem, o livro possui momentos privilegiados na crítica, como a análise da poesia indianista de Gonçalves Dias e do romance urbano romântico. Quanto ao teatro, prefere mostrar a grande vitalidade da comédia de Martins Pena.
Muito se pode esperar quanto aos resultados desta bonita pedagogia que visa despertar o observador atento às linhas que se cruzam na criação literária, no grande painel dos períodos e projetos. Tomara ela logo nos dê um novo livro, alongando-se até os autores brasileiros de nossos dias. Por hora, ao lado do aplauso entusiasmado, intromete-se mais um desejo desta leitora, considerando a segunda edição: vigiar o computador, proibir que repita a paginação cheia de linhas viúvas e textos malcortados.

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