São Paulo, segunda-feira, 5 de fevereiro de 1996
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O preto como síntese

LUIZ RENATO MARTINS

Miró/Caminhos da Expressão
I. Arestizábal, P. Rico, P. Grinberg
Catálogo (Rio de Janeiro, Centro Cultural Banco do Brasil, 11/10-17/12/1995; São Paulo, MAM, 9/1/-25/2/1996), 79 fotos, 96 págs.
R$ 50,00

Dibuixos Inèdits de Joan Miró
P. Rico, F. Miró e Ma. José Lapeña
Catálogo (Mallorca, Fundació Pilar i Joan Miró, 19/12/1994-26/2/1995), 167 págs
R$ 50,00

A Cor dos Meus Sonhos/ Entrevistas com Georges Raillard
Joan Miró
Tradução Neide Luzia de Rezende
Estação Liberdade, 213 págs.
R$ 22,50

O mito da arte irrefletida acerca de Miró tem o aval de Breton, que vê nela "total espontaneidade de expressão (...) inocência e liberdade incomparáveis". A sentença nasceu no entrechoque do surrealismo oficial com os rivais (1). Mas ficou o contra-senso.
Miró foge dessa definição pelo rigor do raciocínio plástico; pelo diálogo com o cubismo e com a arte gráfica; pela estratégia crítica de implodir o sistema pictórico. Assim toma pé, em 1923-24, no debate moderno com um propósito: reduzir o léxico da pintura aos dados básicos: linha, cor e plano (logo materializado como suporte), depurados dos efeitos de profundidade, volume etc. A ação redutiva de Miró, apoiada no cubismo, confere um novo grau analítico à conquista da bidimensionalidade e do primado do plano como qualidades da pintura (ignoradas pelos surrealistas). Põe um novo patamar histórico.
Novos achados de Miró, alheios ao surrealismo, tal a pintura de fundo monocromático (1925), negam o valor de cena transcendente ao quadro, ombreando a pintura às técnicas gráficas e sua idéia de fundo como campo indeterminado; sem contar o endosso ao ato cubista de incorporar letras e números, dando o teor raso de página à tela. Esta analítica materialista da pintura tem mais itens: o efeito antiaurático da visibilidade das travessas de madeira que suportam a tela, calcada pelo pincel; e a ênfase na deformação dos corpos, delineados segundo partes tumefatas. Este sinal, afinado com o grupo de "Documents" (2) e a rudeza da caricatura, revela também a profundidade da pesquisa de Miró: as figuras simplificadas e bidimensionais (cuja concretude as legendas e o repúdio público do autor à abstração atestam), valem como pré-imagens ou esquemas, logo, como exposição de estruturas genéticas da imaginação, explicitando fatores da visibilidade.
A oposição desenho/cor atua na história da arte, desde a Renascença italiana, e foi matriz de várias disputas (Poussin/Rubens no século 17, classicismo/romantismo no 18). A intervenção de Miró nesta questão também é estratégica. Soma-se ao partido reflexivo, do primado do desenho, e constrói um regime cromático analítico restrito às cores primárias, que perdem carga simbólica para a linha e só balizam a sua visão. Mas qual a síntese posta pelo triunfo das linhas? Não é a das formas que a razão clássica contempla. Mas o traço de um espírito atomizado, órfão de formas, baseado na imanência conflituada, oposto ao ideal das formas plenas. Logo, este intelecto está cindido e leva a antinomias. Como desenho, a nova síntese tem um sentido negativo ou antiformal, opõe-se à imagem. E no plano semântico das palavras o entendimento abraça o real. Assim, põem-se tensões insolúveis: de um lado, a base da fantasia visual, o ato sintético da intuição interna subjetiva; de outro, na informação escrita, o vínculo cognitivo do sujeito ao mundo, a designação objetiva dos temas. O que implica, na recepção, o convite reflexivo a uma analítica, instando o público, dada a distância entre figura e palavra, a flagrar a sua própria produtividade interna: a notar o hiato subjetivo entre imaginação e entendimento, sentimento e forma e a objetivar tal contraste no quadro.
O título, pois, não determina. Mas, de fato, põe um problema, um pólo de tensão. O cerne da poética de Miró está nesta tensão insuperável da ida inacabada do subjetivo ao objetivo, que perpetua uma oscilação exposta na materialidade do fato estético (a relação radical linha/cor e o fundo como suporte) segundo um desígnio reflexivo e universalizante. É o que propicia e unifica o uso de tantos meios, técnicas novas e matérias não nobres, realçando o viés expressivo até de detritos. O mesmo propósito democrático universalizante leva Miró a buscar novas táticas contra o valor da forma e do virtuosismo (que Miró recusava em Picasso): o ato semi-infantil, o estímulo dialógico à reação do suporte (3), o fato aleatório. Deste modo, tais práticas anárquicas, sem fim à vista, não são unilaterais; não externam um instinto pré-social prévio a toda legalidade. Querem que a máxima do ato de produzir sentido se universalize como potência geral. Nesse informe há um poder instituinte implícito, uma aspiração legislativa oposta à divisão social estabelecida do trabalho. Assim, Miró pede: "...uma revolução permanente, que nunca fiquemos fixos num ponto (...) uma revisão de tudo. Todos os dias, questiono tudo..."(4).
Frente à radicalidade desta obra inimiga do franquismo desde a guerra civil, crescentemente assentada em técnicas reprodutíveis e orientada para o espaço público a fim de emancipar a arte do seu valor de troca, qual o desafio para um catálogo? Alargar o acesso ao trabalho do artista, multiplicar o alcance da obra. No caso presente, louve-se a documentação visual (fotos da obra, de Miró e dos ateliês) e o zelo gráfico, condizente com a alta importância desta mostra.
Mas, noutros aspectos, este catálogo perde em eficiência para a apostila da mostra de gravuras de Miró (1995), que trazia um texto elucidativo, além de cronologia esclarecedora e fidedigna (5). Os textos atuais, todos de curadores ou executivos do setor (cujo mérito está na realização da mostra), são de fato digressões, sem poder analítico, para um público desavisado. Além da falta da dimensão interpretativa e de uma cronologia, o preço do atual (R$ 50,00) sugere ausência de senso público dos responsáveis. Para uma documentação só dos desenhos, o catálogo da mostra de Mallorca, "Dibuixos Inèdits de Joan Miró", tem mais reproduções (144), apresentadas sóbria e sucintamente.
O interessado pode obter, sob encomenda, catálogos qualificados e por preços, presumo, menores (6). Pode recorrer com melhor proveito ao livro de Miró e Raillard (Estação Liberdade). No gênero e para o tema, um documento notável e que desfaz idéias prontas; bastante ilustrado, embora constem fotos desbotadas.

NOTAS
1. 1941, republicado em A. Breton, "Le Surréalisme et la Peinture", Paris, Gallimard, 1965. Para juízo oposto, acentuando a negatividade e a violência dessa arte com traços de "desastre", ver G. Bataille: "Joan Miró: Peintures Récentes", in "Documents" 7, Paris, 1930; cf. idem, "O. Complètes" I, Paris, Gallimard, 1970.
2. A dissidência do surrealismo, após o cisma ocorrido com o segundo manifesto de Breton e seu alinhamento com o PCF (1930), agrupou-se em "Documents" e a partir de 1931 em "Critique Sociale" (trotskista). O grupo combatia em nome do materialismo o ideário surrealista. A crítica às idéias elevadas remetia-se à idéia de "informe", forjada por Bataille, e propunha a deformação como prática discursiva nas letras e nas artes visuais (Masson, Miró, Giacometti, a "arte primitiva", eram dados como exemplos). Em 1935 ambas facções aliaram-se provisoriamente na frente antifascista "Contre-Attaque".
3. A "dessublimização" do fundo é crescente. Em 1940-41, a base (o céu) das obras da série "Constelações" é feita com o solvente usado para limpar a tinta dos pincéis sujos. Em 1974, Miró incendeia telas; em 1975, defeca sobre um novo suporte, papel-lixa, e faz um tríptico. Na mostra atual, a idéia do fundo como suporte, análogo ao solo de uma oficina, ressalta. Miró privilegia vários elementos descartados tal como o papel de embrulho ondulado, que picota o seu risco. Negando a hierarquia do criador sobre a matéria passiva, nivela-se a um operador de câmera, para quem a relação com o filme se dá em determinação recíproca. Na escultura, o resgate de restos também é central.
4. Cf. J. Miró, "A Cor...", op. cit., págs. 25-6.
5. "A Imaginação Libertária", do crítico P. S. Duarte, constava de um folder (5 págs., 4 fotos pxb, grátis) para a mostra no Rio de Janeiro, e de uma apostila (22 págs., 8 fotos a cores, R$ 5,00) para a mostra em São Paulo. Ver P. Venâncio F., "Surrelistas nos Trópicos", Jornal de Resenhas, nº 6, 4/7/1995, pág. 20.
6. a) C. Lanchner, "Joan Miró", Nova York, MoMA, 1993, 484 págs; b) R. Krauss/ M. Rowell," Joan Miró: Magnetic Fields", New York, Guggenheim Museum, 1972; e c) Fundacion Joan Miró, "Joan Miró: 1893-1993", Mallorca, 1993, 533 págs., US$ 37,50 (fonte: Strand Book Store, Nova York).

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