São Paulo, segunda-feira, 5 de fevereiro de 1996
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Antologia da estupidez

SAMUEL TITAN JR.

Dicionário das Idéias Feitas
Gustave Flaubert
Tradução: Cristina Murachco
Nova Alexandria, 107 págs.
R$ 11,90

Depois de relançar "Madame Bovary", a editora Nova Alexandria volta à carga com Flaubert, desta vez empunhando o "Dicionário das Idéias Feitas", em boa tradução de Cristina Murachco. A bem da verdade, o texto não era inteiramente desconhecido do leitor brasileiro: a tradução que já nos anos 50 Augusto Meyer e Galeão Coutinho fizeram de "Bouvard e Pécuchet", último e inacabado romance de Flaubert, incluía bons excertos do "Dicionário". Sendo assim, ainda que se louve a iniciativa da editora atual, é de se lamentar que o livrinho seja tão parco de informação contextual e literária. Até porque, na ausência destas, o "Dicionário" corre o risco de produzir efeito contrário ao imaginado por Flaubert.
Num dos primeiros registros a respeito ("Carta a Louise Colet", de dezembro de 1852), Flaubert falava da intenção de organizar uma antologia da estupidez humana, contendo "tudo o que se deve dizer em sociedade para ser um homem conveniente e amável", e aduzia: "Quem o ler não ousará mais falar, por medo de dizer espontaneamente uma das frases aí contidas". Ora, apresentados ao público sem mais nem menos, os verbetes do "Dicionário" podem acabar virando "mot d'esprit" em rodinhas sociais. Nem mesmo Diogo Mainardi, o esperto resenhador de "Veja" (22/11/1995), escapou ao contágio; envergando um "pathos" trágico à la Ortega y Gasset, ele escreve: "Na época de Flaubert, as massas começavam a exercer de forma organizada o seu poder censório. De lá para cá, o poder das massas só aumentou (...) A denúncia que ele fazia um século e meio atrás não perdeu a força etc.". Lindo, não?
Vale então lembrar um pouco da história do "Dicionário". Na mesma "Carta a Louise Colet", Flaubert falava de acrescentar um prefácio à sua coleção de tolices do senso comum. Não temos esse prefácio, mas não porque o autor não o tenha escrito (como pensa Mainardi), mas sim porque, nos 20 anos seguintes (1852-1872), o projeto inicial acaba por fundir-se a um outro, o de um longo romance sobre as atribulações de dois copistas. O impulso inicial terá vindo da leitura de uma novela medíocre, "Os Dois Escrivães" (1841), do obscuro Barthélemy Maurice; em 1863, já imerso nos trabalhos da "Educação Sentimental", Flaubert escreve a Jules Duplans sobre "uma velha idéia", um romance sobre duas perfeitas nulidades ("Les Deux Cloportes"). Mas é só em 1872 que ambos os projetos voltam à tona, desta feita sob nova forma: "Bouvard e Pécuchet".
Segundo os planos de Flaubert, que chegou a finalizar nove capítulos, o romance seria mais que uma simples justaposição da história dos dois escrivães e do "Dicionário"; outra vez engana-se Mainardi ao afirmar que, "em geral, o 'Dicionário' é convenientemente publicado como apêndice do último romance de Flaubert". Na versão que chegou a nós, o romance narra a vida de dois funcionários públicos a partir do instante em que, recebendo uma herança, podem deixar de lado seus afazeres burocráticos e tediosos para se dedicarem em paz às coisas do espírito.
Retiram-se a Chavignolles, vila tranquila onde começam a passar em revista todos os ramos do saber humano. O resultado é unanimemente catastrófico, quer se trate de pedagogia ou de jardinagem; intrometendo-se em política, conquistam o rancor da elite local; a série de experimentos ameaça o pé-de-meia redentor; e, para cúmulo de conversa, os dois acabam por desenvolver uma "faculdade terrível" -"a de perceber a estupidez e não mais poder tolerá-la". Desiludidos de si, dos outros e do saber humano, os dois voltam à sua ocupação antiga, só que um degrau acima: põem-se a copiar todas as tolices que puderam encontrar ao longo de suas leituras e experiências. O resultado, que Flaubert designava o mais das vezes como "a cópia", formaria um "segundo volume". Não há como ter certeza sobre o aspecto final desse segundo volume: teria ele componentes narrativos ou traria simplesmente uma transcrição da cópia dos dois anti-heróis? E, neste último caso, teríamos uma série de citações absurdas e/ou contraditórias ou, ao contrário, um dicionário organizado "comme il faut", em verbetes e com remissões internas (cf. os verbetes "loiras" e "morenas")? Difícil saber (1).
Seja como for, o que nos interessa aqui é o modo como os dois projetos chegam a se contaminar. De fato, a narrativa das desventuras de Bouvard e Pécuchet tem muito pouco da dinâmica narrativa que associamos à leitura de romances: como deve esgotar, à maneira de um dicionário, o conjunto das ciências do homem, o romance segmenta-se como que em verbetes. Em contrapartida, o dicionário -que, a julgar pela quarta capa desta tradução, poderia ser lido como brincadeira "saborosa", "chistosa", em que o autor "se solta inteiramente"- ganha contextualização narrativa e distancia-se da voz do autor moralista. O efeito final é de estrita circularidade, uma vez que tanto podemos pensar que o "Dicionário" (ou a "cópia", como queiram) nasce do romance quanto podemos imaginar que a matéria-prima do romance é a própria antologia de besteiras.
Antes que algum fanático da "écriture" se alvoroce demais, convém lembrar que o livro tem pouco a ver com as grandes obras circulares de Mallarmé ou Valéry. Esse labirinto sem centro deve ser entendido menos como ruptura com "Madame Bovary" e a "Educação Sentimental" que como ponto de confluência de grandes tradições da literatura francesa -por exemplo, a prosa narrativa de Voltaire e o romance oitocentista, a concisão verbal e o tom de farsa do primeiro reunido ao pudor declarativo que Flaubert impõe ao narrador. Se Borges e, à sua sombra, Augusto de Campos (em "Linguaviagem"), queriam ver em "Bouvard e Pécuchet" o abandono do limitado programa realista das obras anteriores, pode-se retrucar que tais opiniões são menos apressadas que puramente programáticas. Se não me engano, o valor mimético-realista está sempre presente neste derradeiro romance feito de refugo linguístico, e de modo especialmente malicioso: como lembrou Hugh Kenner, se nosso "escritor de segunda mão é o realista supremo, isso só acontece porque as pessoas reais vêm modelando suas vidas a partir das produções de escritores de segunda" (2). Uma sociedade que se deixa apreender e retratar por meios verbais tão banais e desgastados, por dois sujeitinhos tão ineptos, não merece dupla e infinitamente o desprezo do leitor? E, em nome de tão boa causa, não mereceríamos uma edição integral de "Bouvard e Pécuchet"?

NOTAS
(1) Para um bom sumário da questão, ver a edição de Claudine Gothot-Mersch (Paris, Folio, 1979).
(2) Num livrinho pouco lido, mas saborosíssimo: "Flaubert, Joyce and Beckett - The Stoic Comedians" (Boston, Beacon Press, 1962), pág. 23; ver ainda págs. 14-15.

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