São Paulo, segunda-feira, 5 de fevereiro de 1996
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O Brasil no mundo

JOSÉ ARBEX JR.

Uma História Diplomática do Brasil (1531-1945)
José Honório Rodrigues e Ricardo A. Seitenfus
Civilização Brasileira, 512 págs.
R$ 32,00

A República e sua Política Exterior (1889 a 1902)
Clodoaldo Bueno
Unesp/IPRI, 382 págs.
R$ 29,00

O Contencioso Brasil x Estados Unidos da Informática
Tullo Vigevani
Edusp/Alfa-Ômega, 352 págs.
R$ 33,80

Sinal dos tempos: três lançamentos importantes tratam de política externa brasileira, tema tradicionalmente reservado a uma pequena elite de "iniciados". Não é mero acaso. A crescente inserção do Brasil no mercado internacional, uma tendência colocada de forma irresistível pela era da "globalização", tem, como contrapartida, um vácuo de reflexões abrangentes e críticas sobre o lugar do país no mundo. Mesmo a questão mais óbvia -como, por exemplo: o que o Brasil pode esperar do Mercosul?- provoca perplexidade. Mais do que nunca são bem-vindas obras que procuram fornecer parâmetros históricos, teóricos e práticos para o estudo e a formulação de estratégias de política externa, aliás uma dimensão inseparável da história do próprio país.
O lançamento mais abrangente em termos de amplitude histórica é "Uma História Diplomática do Brasil (1531-1945)". O livro toma por base o curso ministrado no Instituto Rio Branco por José Honório Rodrigues, durante quatro décadas a partir de 1946. Seus textos, reunidos em apostila em 1956, foram organizados por Lêda Boechat, mulher de Honório (morto em abril de 1987), e atualizados por Ricardo Seitenfus. O resultado é um importante trabalho de referência, ainda que se questionem certas concepções (por exemplo, a de que a história procede por ciclos de "introversão" e "extroversão", conceitos tomados da obra de Carl Jung sobre tipos psicológicos).
Honório resume a história diplomática do país em três períodos (classificação em geral aceita pelos historiadores): o imperial, ou de expansão, que vai do traçado do meridiano de Tordesilhas até a perda do Uruguai, em 1828; o nacional, caracterizado pela consolidação político-militar do território, de 1828 até a morte de Rio Branco, em 1912; finalmente, o interamericano, iniciado com o ajuste de contas com o passado monárquico "europeu" e a busca de interlocução com os Estados Unidos e vizinhos da América Latina.
O livro contém uma exposição minuciosa até a gestão de Rio Branco (1902-12). Descreve as negociações, os bastidores e a situação política que permitiram a Rio Branco consolidar o estabelecimento das fronteiras do país, no quadro de conflitos com a Argentina (referentes aos 30.621 km2 das Missões), França (400.000 km2 que Paris alegava pertencerem à Guiana Francesa), Bolívia e Peru (403.000 km2 que acabaram sendo incorporados pelo Acre). Honório resgata a dimensão de Rio Branco, em particular numa época em que o Brasil acabara de ser humilhado (durante a Revolta da Armada, no Rio, em 1893, o então presidente Floriano Peixoto recorrera à ajuda estrangeira contra os brasileiros que se opunham em armas ao seu governo).
No texto original de Honório, como observa Seitenfus, as décadas seguintes, até 1945, são analisadas de forma mais panorâmica, ainda que se demore na história da participação do Brasil na Liga das Nações. Por uma série de injunções históricas analisadas no livro, o país adquiriu na Liga um destaque desproporcional em relação à sua força real, e acabou fazendo um triste papel. Foi uma das fases mais vexatórias da política externa brasileira. Esse tema, aliás, ganha atualidade quando o Brasil pleiteia um lugar no Conselho de Segurança da ONU. Seitenfus completa o texto original permitindo que o leitor se situe melhor na fase do entre-guerras e na política de Getúlio Vargas em relação ao surgimento do nazi-fascismo na Europa.
Por um feliz acaso, o segundo lançamento, "A República e Sua Política Exterior (1889 a 1902)", de Clodoaldo Bueno, oferece um forte complemento ao livro de Honório. Bueno coloca uma questão crucial para a compreensão das bases históricas da diplomacia brasileira: o nascente governo republicano tinha um projeto de política externa, ou apenas respondia, de improviso, aos problemas que se acumulavam no horizonte? A resposta não é fácil. O período aqui analisado é um dos mais importantes e mal compreendidos da história do Brasil. Trata-se de um momento em que o país se afasta de seus vínculos com a Europa e volta-se para a América, tendo que enfrentar questionamentos de suas fronteiras e uma conjuntura internacional potencialmente hostil.
É o auge da expansão imperialista das potências coloniais. A doutrina Monroe ("a América para os americanos", formulada em 1823), com seu corolário infame (o "big stick" de Theodore Roosevelt, 1904, legitimando uma eventual intervenção americana em qualquer país da América Latina) é uma sombra que paira sobre o hemisfério. O medo de uma eventual partilha do Brasil pelas potências coloniais é, então, muito presente. Rui Barbosa fica indignado -diz Bueno-, quando o governo de Floriano aventa a hipótese de construir uma estátua em homenagem a Monroe, em sinal de gratidão pela ajuda contra os revoltosos da Armada.
O trabalho de reconstituição feito por Bueno -a recuperação de artigos que apareciam na imprensa, de depoimentos de deputados, diplomatas e intelectuais- dá uma idéia viva da relação entre a atmosfera internacional e a "política interna". É curioso perceber, por exemplo, o peso da doutrina Monroe numa época em que os republicanos procuravam apoio contra os monarquistas, tradicionalmente vinculados aos poderes europeus. Não por acaso, foram os monarquistas, como Joaquim Nabuco, os primeiros a denunciar a subserviência dos políticos brasileiros a Washington.
O estudo dessa época também ajuda a compreender a dinâmica da relação entre o Brasil e os vizinhos do Sul (Argentina, Paraguai e Uruguai), com quem o país manteve relações de permanente rivalidade, que eventualmente, ao longo do século 19, desembocaram em guerras. Honório e Bueno abordam a estratégia brasileira de "capturar" o Paraguai e o Uruguai para sua esfera de influência, obstando o crescimento da influência da Argentina. Nesse contexto, a proclamação da República e o consequente deslocamento da orientação da política externa brasileira assumiram um significado importante.
A rivalidade entre Argentina e Brasil percorrerá o século 20, atingindo o auge durante as ditaduras nos anos 70, quando os dois países desenvolveram projetos para a construção da bomba atômica. Essa rivalidade, sob vários aspectos, foi conveniente para Washington. Ela impediu o surgimento, na América do Sul, de um pólo com força e independência suficientes para, ao menos, negociar seus próprios interesses internacionais (incluindo os comerciais e os militares) em termos mais vantajosos do que os impostos pela Casa Branca.
É exatamente esse quadro histórico que permite dimensionar o impacto do Mercosul. Pela primeira vez, os dois países estabelecem uma relação de colaboração, deixando para trás um longo período de desconfiança e ressentimentos.
Ninguém pretende, com isso, afirmar que o Mercosul significa um "grito de independência" em relação aos Estados Unidos, ou que o seu sucesso como mercado comum esteja assegurado. Mas é inegável que o Mercosul produziu mudanças no cenário geopolítico do hemisfério, cujo significado transcende a eficácia econômica.
E se uma das questões centrais da diplomacia brasileira é a definição das relações com Washington, cabe ao terceiro livro, "O Contencioso Brasil x Estados Unidos da Informática", de Tullo Vigevani, lançar uma luz sobre o tema. Vigevani analisa a polêmica sobre direitos de patente e propriedade intelectual travada entre Brasília e Washington, entre setembro de 1985 e outubro de 1989. O tema não poderia ser mais pertinente: na era da globalização, o domínio das tecnologias virtuais é tão importante quanto foi, digamos, o conhecimento das técnicas mecânicas à época da Revolução Industrial. Por isso, o melhor raio X que se pode fazer da política externa de um país é examinar o seu comportamento face a esta questão crucial.
O leitor conhecerá os processos de tomada de decisão pelo Itamaraty, em meio ao emaranhado de pressões envolvendo a mídia, o Congresso, o Executivo e os interesses de empresários dos Estados Unidos e do Brasil. Vigevani conclui que o Brasil simplesmente não levou em conta as novas necessidades tecnológicas colocadas pela globalização. Os Estados Unidos e outros países avançados adotaram uma política ofensiva no sentido de proteger sua tecnologia de ponta (e, portanto, as patentes e os direitos autorais) como condição essencial para assegurar competitividade no mundo globalizado. Criar tecnologia de ponta demanda um esforço estratégico nacional, e o Estado tem papel fundamental nisso. Mas -diz Vigevani- não foi esse o caminho adotado pelo Brasil.
A diplomacia brasileira preferiu concentrar sua participação no contencioso em torno de disputas normativas. Aparentes "vitórias" diplomáticas tiveram que ser abandonadas com o passar do tempo, sob o impacto de crescentes exigências de mercado (por exemplo, com a abertura do país para as importações). Para o governo e a maioria do empresariado brasileiro, a participação na globalização resume-se a um crescimento econômico dependente, já que o país prova-se incapaz de criar e manter suas próprias estratégias. Vigevani fala de um período que vai de Figueiredo a Itamar Franco, mas sua análise se mantém extremamente atual, como mostra a polêmica em torno do caso Sivam.
A leitura dos três livros fornece, portanto, subsídios importantes para uma reflexão crítica sobre os rumos da política externa brasileira. Num momento em que a competição internacional por mercados está cada vez mais acirrada e em que o Brasil quer consolidar o seu perfil de "global trader" com destacada participação diplomática na arena mundial, essa reflexão é indispensável. É uma questão colocada para a cidadania.

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