São Paulo, segunda-feira, 5 de fevereiro de 1996
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O luto das esquerdas

ALBANO MARCOS PÊPE
EDITORA DA UNIVERSIDADE - UFRGS, 110 PÁGS.

R$ 13,00

Utopia e melancolia são duas palavras-chave utilizadas por Ernildo Stein para designar o "mundo perdido das experiências socialistas". Segundo ele, tais conceitos podem esclarecer algumas questões fundamentais relativas à perda dos ideais socialistas e, consequentemente, melhor compreender a elaboração do luto daqueles que, aferrados ao projeto socialista, tornaram-se hoje seus órfãos.
Em seu livro, articulam-se alguns elementos relativos ao fim das utopias e às várias formas de manifestação da melancolia, estado em que se encontram aqueles que acreditavam no socialismo. Ouvem-se as mais diversas liturgias da morte do ideário socialista. E, curiosamente, quase todas apresentam, como pano de fundo, a desagregação da URSS, a queda do muro de Berlim ou, em teses mais espetaculares, associam tais fatos ao "fim da história" e à consequente vitória definitiva da economia de mercado. Não é este o caso do livro do Stein, que retoma o debate e inclui novas reflexões ao tema com um rigoroso estudo hermenêutico.
Em suas considerações iniciais, somos remetidos ao que poderíamos chamar de "buraco negro" da cultura ocidental contemporânea: a noção de crise. Ao abordá-la, o autor direciona o seu discurso para o legado da racionalidade moderna, onde a vida cotidiana, a reflexão, a ciência e a técnica se confundem e, muitas vezes, nos confundem a ponto de duvidarmos da herança iluminista que tanto prezamos. E como se colocam os filósofos diante deste cenário? Para Stein, foram poucos os pensadores que se propuseram a refletir sobre as crises que aí estão. Os próprios paradigmas filosóficos não dispõem, face às suas características, das condições necessárias para desenvolver modelos que ofereçam soluções aos graves impasses que se acumulam neste fim de milênio.
Mas nem por isso deixam os filósofos, a partir de sua influência nas ciências humanas, de partilhar da construção de modelos explicativos para as crises existentes, já que "as ciências humanas decidem sobre o destino humano sempre envolvidas, em alguns aspectos, em pressupostos filosóficos mais atuantes e mais diretos". Nessa perspectiva, o autor vê no "paradigma da subjetividade moderna hegeliano-marxista", que serviu de base para o desenvolvimento das ciências humanas neste século 20, um modelo de ação prejudicial ao desenvolvimento histórico da humanidade. Fundamentalmente, porque não cabe à filosofia produzir tais modelos mas, antes de tudo, manter seu lugar de guardiã da racionalidade como um todo.
Por isso, os ideais socialistas tratados no discurso filosófico e na elaboração de modelos hermenêuticos das ciências humanas chegam a este fim de milênio, segundo Stein, marcados pelo fracasso de um modelo sustentado por filosofias que, ao mesmo tempo, silenciavam sobre outras direções do pensamento. "Não há como não nos perguntarmos se vamos resolver de uma vez para sempre o luto diante da perda de algo que não mais recuperaremos para, então, encontrarmos outros caminhos também na filosofia, ou levarmos a sério, sem culpa, aquelas filosofias que tanto avançaram no caminho da racionalidade". Eis aí um repto aos pensadores para a profunda necessidade de elaboração da melancolia e do luto, face ao fracasso dos ideais socialistas, para que possamos voltar à filosofia, enquanto lugar capaz de pensar o sentido das ideologias.
No processo de elaboração do luto das esquerdas, recomenda o autor, faz-se necessário mostrar que o trabalho intelectual, desenvolvido nos últimos 50 anos, esteve em grande parte comprometido com uma "solução socialista", que buscava o fim das injustiças sociais. Na compreensão do fim do ideário socialista, cabe à filosofia "jogar fora grande parte do lastro de atitudes, de idéias, de expectativas (...). Trata-se de jogar fora grande parte daquilo que valeria uma vida". Ora, tal atitude não é fácil. Corremos o risco de elaborar falsamente a perda, ou por um processo maníaco -tudo acabou e viva o liberalismo- ou então por um "tudo acabou", mas cabe recolher os restos do socialismo como uma forma de consolo. "Evidentemente, as duas posturas são muito claras e elas aparecem em vários filósofos durante o século 20".
Mas Stein, em seu texto, não se permite referendar tais manifestações da melancolia, pois tem como referência, enquanto órfãos da utopia, os órfãos intelectuais, os órfãos teóricos, enfim os indivíduos politizados que enfrentavam situações na defesa de projetos políticos emancipatórios, e acredita que os mesmos têm condições positivas de haverem aprendido com a perda de seu objeto, ou seja, com o fim do socialismo. A partir de agora, a filosofia deve mergulhar mais radicalmente no estudo conceitual e reflexivo acerca "da liquidação da solidariedade humana, da dignidade humana, da afirmação da vida humana".
Apoiado nesses pressupostos, o autor mergulha no universo conceitual da moral, da ética e de seus vínculos com a ação revolucionária e suas justificações.
O que ele se pergunta, a partir de agora, é o que pode ser resgatado do ponto de vista da filosofia. Quando se apreende criticamente o mundo factual em suas dimensões humana, social e política, leva-se em consideração uma idéia de sociedade humana projetada a partir de certos cânones. Ao mundo fático, contrapõe-se uma idéia de mundo contrafático. Com base neste procedimento hermenêutico, Stein remete sua exposição a um conjunto de questões as quais caberia à filosofia tentar elucidar: como ocorre em planos conceituais a passagem do fático ao contrafático, ou de outro modo, do ser ao dever-ser? Como a dialética desenvolvida por Hegel e subsumida pelo marxismo faz a aproximação entre o particular e o universal? Nesta vertente, observamos que tais indagações fazem emergir "a questão da relação entre ética e sociedade, entre ética individual e a imposição revolucionária dessa ética como ponto de vista universal". São esses alguns temas que o livro de Ernildo Stein traz à superfície, em sua abordagem acerca do possível fim das utopias.

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