São Paulo, segunda-feira, 5 de fevereiro de 1996
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O arquivo de Hegel

VICTOR KNOLL

Hegel
François Châtelet
Tradução: Alda Porto
Jorge Zahar Editor, 209 págs.
R$ 19,00

Na "Introdução" de seu livro sobre Hegel, Châtelet revela para o leitor os seus propósitos, a sua estratégia e suas razões para o modo de como irá expor o sistema hegeliano. Desde logo, adverte-nos que não tratará ou mesmo não levará em conta os dados biográficos, pois "o essencial está não nas motivações pessoais, mas nos textos" (pág. 7). Assim, usando o jargão do próprio Hegel, sua abordagem se instalará de imediato no âmbito do Espírito, isto é "na perspectiva da cultura concebida como totalidade sistemática das obras" (pág. 8).
Por força dessa decisão, não irá também se preocupar com a gestação do sistema. Uma "negligência voluntária" que atende a uma dupla exigência de caráter formal e de conteúdo. Pois só faz sentido refletir sobre uma gênese quando posta em relação com o seu resultado. Aqui, atemo-nos ao resultado: o sistema já acabado. Quanto ao conteúdo, o chamado "jovem" Hegel (e o mesmo vale para o "jovem" Marx ou o "jovem" Kant) se presta a diferentes interpretações, as quais detêm caráter contingente.
O caminho assumido por Châtelet é este: "Compreender Hegel como o teórico que escreveu 'A Ciência da Lógica', que elevou ao mais alto grau a vontade de racionalidade sistemática, e que não hesitou em deduzir dela todas as consequências nos diversos domínios do pensamento, da estética à política" (pág. 8).
A segunda meta de Châtelet é mostrar que a dialética, tal como Hegel a concebeu, não é um método, ou melhor, não é apenas um método. Ver na dialética hegeliana tão-somente este aspecto é o que permite simplificar o seu sistema. É o que permite, grosseiramente, transformar o sistema em esquema. O sistema deve ser compreendido como um processo e não como um conjunto de conceitos estáticos.
Châtelet salienta, ainda, um terceiro aspecto quanto ao seu propósito: não pretende que seu livro seja uma "introdução à leitura de Hegel", porém, tentará, antes, "determinar o lugar que ocupa o hegelianismo na constituição da racionalidade contemporânea" (pág. 10). Châtelet quer responder a esta pergunta: que significa alguém ser hegeliano hoje?
Enquanto a França instaura a República e a Inglaterra realiza a Revolução Industrial, a Alemanha (como a Itália) vive "o tormento da unidade nacional (que) deixa de ser um sonho e começa a tornar-se uma reivindicação que os fatos legitimam" (pág. 10). Compreende-se, portanto, o lugar privilegiado que a questão do Estado, ao lado da arte e da religião, ocupará na confecção do sistema. Visto como movimento da razão, o sistema tende para a filosofia da história e para a filosofia do direito (obras, aliás, que se completam). A história e o direito perfazem um todo no Estado que, em última instância, é manifestação do Espírito. Somente a arte e a religião compartilham de seu "valor prático" e de seu "interesse teórico". "Aufklãrer extremado, Hegel nada quererá perder do que se passa nessa profusão de acontecimentos, ideologias e pensamentos. Será seu arquivista genial" (pág. 11).
Às proposições já formuladas, a pergunta que Châtelet quer responder ou, ainda, de modo mais forte, a sua ambição é esta: "Compreender em torno de que princípios se organiza e reúne a coleção hegeliana" (pág. 11), pois, em quantidade e qualidade a sua informação (o seu arquivo!) passa pelos domínios da química, da filosofia, da política, da história da arte. Em sua época, parece que nada escapa ao seu saber.
Agregue-se uma quarta razão para a visão que Châtelet procura esboçar de Hegel: três teóricos que embasam a reflexão filosófica contemporânea (segundo nosso autor) tomaram Hegel como referência. São eles Kierkegaard, Marx e Nietzsche. Uma referência pela via da negação.
Para Kierkegaard, Hegel "destruiu, com sua obstinação em estabelecer o império da Razão, a necessária e perturbadora tensão que está no coração do homem, ou seja do Ser, a tensão do Finito e do Infinito" (pág. 12). Enquanto a ruptura de Kierkegaard com Hegel é abstrata, pois "o faz com os meios tomados emprestados à concepção que rejeita" (pág. 14), Marx e Nietzsche se opõem de maneira efetiva.
Marx condena a concepção do evolver histórico como progresso da Idéia. Assim, ao assumir a perspectiva de Feuerbach, critica a lógica hegeliana da história e se atém à realidade social efetiva. Marx "cria" o materialismo histórico e dá-se o rompimento. Para Nietzsche o arco histórico que tem sua origem em Platão e que encontra o seu acabamento teórico em Hegel contém "os elementos determinantes desse devir que leva ao advento do niilismo" (pág. 13). Ora, são precisamente essas recusas que tornam Hegel indispensável para a compreensão não apenas da modernidade, mas, sobretudo, dos tempos atuais. Esta passagem de Châtelet marca de modo definitivo a sua postura: "Hegel não é apenas a ocasião para Kierkegaard de se queixar, para Marx de realizar, para Nietzsche de recusar: ele determina um horizonte, uma língua, um código dentro do qual ainda nos encontramos hoje. Hegel, portanto, é nosso Platão: aquele que delimita -ideológica ou cientificamente, positiva ou negativamente- as possibilidades teóricas da teoria" (pág. 15).
Aí temos a quarta razão de Châtelet, que de certo modo (ou à moda hegeliana) permite-nos reconhecer a "Razão" da história da filosofia. Pois, por acréscimo, "Hegel realizou o sonho do Saber absoluto", que segundo Châtelet não foi e não é absurdo, equívoco ou impossível. A pretensão à posse de um saber absoluto não é nova e é própria do caráter da "decisão" filosófica. Tal "decisão" já a encontramos em Platão, que julgou "possível ser sábio, ou seja, articular um sistema de respostas a todas as perguntas essenciais que um homem pode se colocar" (pág. 15).
Além de Platão e Hegel, dois outros também julgaram ter articulado um sistema do saber: Aristóteles e Spinoza. A propósito, notemos que, se Hegel tem sempre Platão em sua mira (como quer Châtelet), refere-se constantemente aos outros dois mestres metafísicos.
Compreender Hegel, seja pela via negativa -as recusas de Kierkegaard, Marx e Nietzsche-, seja pela positiva -uma vez que "a obra de Hegel articula-se sobre a de Platão" e pela aproximação com Aristóteles e Spinoza-, permite-nos ver que em sua obra temos a realização teórica do que a civilização contemporânea, em sua atividade científica, técnica e administrativa, efetuou de maneira prática ou pela prática. O sistema hegeliano impõe uma certa relação que Châtelet pretende discutir em seu livro e que passa por duas hipóteses: "aquela segundo a qual o estado industrial é uma consequência -através de várias mediações genealógicas- da filosofia (isto é, do idealismo platônico), e a que pretende que o hegelianismo seja, ao mesmo tempo, a realização (teórica) da filosofia e o pensamento da modernidade -em sua essência" (pág. 16).
Assim, ler Hegel aponta para um triplo interesse, pois sua obra pensa as condições de nossa atualidade, o sentido do Estado, o alcance da ciência e da técnica. Compreende-se, portanto, que o propósito final de Châtelet (ou seu propósito último) é "mostrar que a dialética hegeliana é o modo discursivo que implica necessariamente a realização da filosofia" (pág. 19).
Seria desejável, pelo menos, que Châtelet respondesse a duas perguntas: para Hegel a "Idee" detém ou desempenha o mesmo valor teórico que a "Idea" no interior da metafísica platônica? O sentido da dialética hegeliana é solidário ou semelhante àquele constituído e atribuído por Platão em seus "Diálogos"? Lembremos que é o próprio Châtelet quem diz que para Hegel a dialética não é apenas um método, mas sugere que, além de método, é sobretudo o movimento do real. Como Platão avaliaria semelhante posição?
De resto, parece que para Hegel o real são os indivíduos. Basta correr os olhos sobre as páginas das "Lições sobre Estética" para reconhecermos o lugar do real. A "Razão" articulada pelos indivíduos e articuladora dos indivíduos. Ao conceber o Espírito -as realizações da história ou do fazer histórico-, ao mesmo tempo sujeito e objeto, temos o embrião da dialética. Como Platão lidaria com semelhante posição?
De qualquer modo, quaisquer que fossem as respostas que Châtelet pudesse nos ofertar, deixa-nos uma advertência: algumas concepções filosóficas atuais ignoram o hegelianismo, por assumirem o empirismo lógico, o naturalismo cientificista ou por reconhecerem na fenomenologia um início absoluto e, assim, "se privam de um bom ponto de apoio. É melhor -como Marx e Nietzsche- começar por Hegel, visto ser ele um fim" (pág. 19).
Châtelet termina a exposição de sua compreensão de Hegel, numa clara referência a Croce, com estas palavras: "Quanto a saber o que existe de vivo e morto em Hegel, é tarefa de um esquartejador, não de um filósofo" (pág. 19).

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