São Paulo, segunda-feira, 5 de fevereiro de 1996
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Inquieto e polêmico

FERREIRA GULLAR

Política das Artes/Textos Escolhidos 1
Mário Pedrosa
Organização e prefácio: Otília Arantes
Edusp, 82 ilustrações (pxb), 368 págs.
R$ 35,00

Este é o primeiro volume de uma série de quatro em que Otília Arantes pretende reunir o fundamental da obra crítica de Mário Pedrosa. Trata-se de um trabalho louvável sob todos os aspectos, já que essa obra tem importância indiscutível, tanto no plano teórico como histórico, para a avaliação e conhecimento da arte brasileira deste meio-século.
O livro nos oferece uma seleção dos textos mais significativos que Mário Pedrosa escreveu no período compreendido entre 1933 e 1980, sobre as relações entre arte e política, mas também acerca da função dos museus, das bienais e salões de arte. Sem desmerecer o papel que tais instituições desempenham na vida artística do país, não deixa ele de apontar suas deficiências e mesmo o caráter anacrônico dos princípios que às vezes as norteiam, como no caso dos salões oficiais. Sem complacência, ironiza o reconhecimento pelo Estado brasileiro, naquela época (anos 50), de dois salões oficiais, um moderno e outro acadêmico, bem como os critérios de premiação e as obrigações impostas aos artistas premiados, reminiscências do velho Salão Nacional de Belas Artes, do século 19.
Isso não o impede, porém, de analisar criteriosamente as obras expostas e de algum modo apoiar o Salão cuja existência reconhece importante para a carreira do artista plástico, especialmente naquela época, quando ainda não existia, no Brasil, o mercado de arte. Essa importância se evidencia na presença, por exemplo, naquele Salão de 1959, de artistas como Iberê Camargo, Amílcar de Castro, Fayga Ostrower, Mary Vieira, Manabu Mabe, Rubem Valentim, Renina Katz, Maria Bonomi, Gilvan Samico, Benjamin Silva, Isabel Pons, Aldemir Martins, Arnaldo Pedro d'Horta etc. Nessa série de textos, destaca-se um longo ensaio de cerca de 60 páginas, intitulado "A Bienal de Cá Pra Lá", em que Pedrosa, ao fazer o balanço das Bienais paulistas, traça uma visão sintética, rica, abrangente e lúcida da arte moderna brasileira, desde a Semana de Arte Moderna até 1970.
Se "Política das Artes" nos mostra o crítico militante, envolvido no dia-a-dia das questões artísticas, tanto no plano nacional como internacional, ajuda-nos também a compreender o pensamento e a personalidade de Mário Pedrosa, sempre comprometido com o destino da cultura e da sociedade. A própria organização do volume possibilita-nos apreender com maior clareza as oscilações e mudanças do pensamento do crítico, ao longo de toda a sua vida, a começar pela célebre conferência sobre a obra de Kathe Kolwitz até os textos da fase chilena e pós-exílio. Entre esses dois momentos é que se desenvolve o fundamental de suas indagações e respostas aos problemas da arte contemporânea.
Na conferência sobre Kathe Kolwitz, Mário Pedrosa é um marxista radical, para quem o modo de produção material determina as manifestações artísticas, enquanto a adesão do artista à luta do proletariado é que o torna capaz de "divisar a síntese entre a natureza e a sociedade", sem as deformações da visão idealista determinadas pela ideologia burguesa. Se a arte de Kathe Kolwitz alcança o nível de expressão que alcança é, segundo Pedrosa, porque ela é filha de um pedreiro e se manteve fiel à sua classe. E, como a arte social não é um divertimento mas uma arma, louva a obra da gravadora porque "concorre para dividir ainda mais os homens" e serve para "alimentar o ódio de classe implacável". Ou seja, a função da arte é ajudar o proletariado a tomar o poder e mudar a sociedade.
Os artigos que Pedrosa publica no "Correio da Manhã", em 1956, como os que publicará depois na "Tribuna da Imprensa" e no "Jornal do Brasil", estão muito longe de tais concepções; são mesmo a sua negação. Agora, exime a arte de qualquer submissão às exigências sociais: "Não é o homem que existe para a sociedade, mas o contrário. A solicitação artística existe ou se faz sentir a despeito da sociedade. O artista nasce, está acabado". Se é verdade que essa desvinculação do social torna a arte manifestação estritamente individual, isso não lhe tira a importância, uma vez que "a obra criada seria, em todo caso, resultado direto de um temperamento individual ultra-sensível às realidades mais profundas de sua própria época".
Essa mudança drástica da visão pedrosiana, que despolitiza a arte, não está isenta de conteúdo político, uma vez que ele, a cada momento, usa o exemplo da liberdade do artista moderno ocidental para denunciar, no academicismo do realismo socialista, o espírito totalitário do stalinismo. Afirma que, ao contrário da arte acadêmica, a arte moderna não pode ser manipulada pelo Estado e assim vê no artista moderno o protótipo do homem livre: "O homem livre e o artista livre se encontram hoje, por isso mesmo, no mesmo plano espiritual". Não obstante, uma questão continua exigindo-lhe resposta: a função de uma arte que já não serve, como outrora serviu, para idealizar aos olhos do povo o poder da classe dominante nem serve tampouco, como prazer estético, a esse povo, que com ela não se identifica.
A resposta a essa questão é que leva Pedrosa a buscar, na própria obra de arte, sua justificativa. Para isso, era necessário demonstrar que, independente das vinculações que mantenha com a natureza ou o universo social, a forma artística é expressiva por si mesma e o prazer que ela propicia satisfaz "as necessidades superiores de nossos sentidos, fustigados por mil novos estímulos, e do nosso espírito, excitado pelos graves problemas do destino do homem".
Essa defesa da autonomia da arte e da liberdade do artista torna-se problemática à medida que, para fugir às imposições do mercado e da sociedade de consumo, o artista termina por destruir a obra enquanto objeto de arte e por negar a própria arte. Em vários momentos, Pedrosa aborda esta questão, afirmando que "a obra de arte em sua essência não é um objeto para o consumo", identificando "uma força atuante externa, verdadeira lei de aceleramento das experiências artísticas", determinada pelo consumo em massa. Após constatar que a verdadeira arte é incompatível com a sociedade de consumo, tenta justificar, nessas condições, o trabalho do artista como "o exercício experimental da liberdade".
É quando as coisas estão nesse ponto que as circunstâncias políticas o levam para o exílio no Chile. Lá, renasce-lhe o entusiasmo pela utopia de um Estado socialista, na mesma proporção em que aumenta sua revolta contra o capitalismo. Surpreendentemente, Pedrosa reaproxima-se de suas teses dos anos 30, denuncia a ligação entre a arte moderna e o imperialismo e vê, no "artista famoso, dentro da sociedade burguesa, a plena encarnação do herói individualista, o maior fetiche criado pela sociedade", que o gratifica porque "ele representa a máxima realização dos valores que ela defende". E diz que, em nossa época, só se faz arte abstrata, porque a tecnologia oferece à burguesia "outras formas eficazes de difundir sua ideologia". Por outro lado, após afirmar que a arte moderna nasce com o imperialismo e que a civilização burguesa está num beco sem saída, identifica nas condições do Terceiro Mundo a possibilidade de renascimento da arte: "Abaixo da linha do hemisfério saturado de riqueza, de progresso e de cultura, germina a vida. Uma arte nova ameaça brotar". Mas a experiência socialista chilena é liquidada em poucas horas e o sonho de Mário se esvanece. Em Paris, ele se refaz do golpe, minora seu radicalismo terceiro-mundista e se volta para o Brasil. Crê, agora, que nas manifestações artísticas pré-cabralianas estaria a fonte rejuvenescedora da arte brasileira.
Ao fim da leitura deste livro inquieto e polêmico, rico de idéias, conhecimento e sensibilidade estética, salta a figura de Mário Pedrosa como uma das mais marcantes personalidades da arte brasileira deste meio-século. Ele assumiu as contradições da arte dos novos tempos e tudo fez para manter viva sua crença nela; na verdade, a crença numa nova sociedade, porque a concepção utópica que, na juventude, fez dele um militante da causa socialista, é de fato o motor oculto desta admirável aventura espiritual que é sua obra de crítico de arte.

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