São Paulo, segunda-feira, 5 de fevereiro de 1996
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Gil x Paulinho da Viola

JOSUÉ MACHADO

Gilberto Gil convidou Paulinho da Viola a travarem um duelo musical por causa do desentendimento entre os dois. O jornal então publicou nota lembrando que Noel Rosa e Wilson Batista participaram do primeiro grande desafio dessa natureza, "que rendeu cerca de seis sambas, entre eles os antológicos 'Feitiço da Vila' e 'Palpite Infeliz"'.
Quer dizer então que o duelo rendeu "cerca" de seis sambas?
Os computadores atuais fazem essas coisas com os leitores. Como não sabem exatamente o número de certo fato e não têm tempo ou disposição para pesquisar ou perguntar, lascam coisas como cerca de aproximadamente mais ou menos seis. Ou meia dúzia.
Eles se esqueceram de que essas palavras indicadoras de imprecisão, aproximação ou dúvida só se usam com valores grandes e redondos, como os destes exemplos tirados de jornais:
"O BC calcula que Ângelo Calmon de Sá desviou cerca de R$ 500 milhões do Banco Econômico."
"O governo gastou cerca de R$ 5 bilhões no processo de absorção do Banco Nacional pelo Unibanco."
"O Brasil tem cerca de 10 milhões de trabalhadores desempregados e mais ou menos 20 milhões na economia informal."
Vale também para decimais ou porcentagens sujeitas a oscilações. Principalmente quando se trata de previsões econômicas.
"O Brasil cresceu cerca de 4% em 1995; só absorverá o estoque de desempregados se baixar a taxa de juros e estimular a economia para crescer aproximadamente 6%. Daí para cima."
No caso dos sambas, o redator poderia ter disfarçado sua desinformação sem atropelar a lógica nem ofender os leitores, dizendo que o duelo gerou "pelo menos" seis bons sambas. Que tal? Porque "cerca de seis" pode indicar de 5,9 a 6,1. Ou, para ser mais preciso, entre 5,537 a 6,498 sambas.
A chegada de Saramago
O escritor português José Saramago chegou ao Brasil, e o jornal anunciou no título:
"Saramago chega ao Brasil e recebe amanhã o prêmio literário Camões."
Tudo bem. Em seguida atacou no texto, atropelando a regência do verbo, que ele "chegou ontem às 11h em Brasília". Chegou "em" Brasília, sim, senhor.
A legenda fez coro com o texto no maltrato ao verbo:
"O escritor José Saramago chega no aeroporto de Brasília."
Chegar é verbo indicativo de movimento para, já dizia aquele empresário que sonega impostos e embolsa a bufunfa do FGTS dos seus operários; rege a preposição "a". Quer dizer, usa-se chegar com a preposição "a" e não "em", nos casos em que ele exige preposição. Chega-se "a" algum lugar.
"Eles chegaram ao Uruguai para a refinada festança do Gigi Scarpa."
"Cheguei a casa cedo ontem."
(Sem acento no "a" porque casa, lar, rejeita artigo e portanto a crase.)
A verdade é que os brasileiros começaram a chutar a regência tradicional "chegar a" e, inconscientemente, consideram que quem chegou já está lá; se já está lá, está "em". Portanto, usam chegar "em" na linguagem de cama, mesa, banho e botequim:
"Cheguei 'em' casa cedo."
"O deputado chegou 'em' Brasília para votar bem."
Mas, convém repetir, em textos escritos e formais, o verbo chegar não vive sem "a" nesses casos.
"O deputado chegou a Brasília para defender o povão."

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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