São Paulo, terça-feira, 6 de fevereiro de 1996
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Mauro Rasi faz a comédia da perda

NELSON DE SÁ
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Autor de "Pérola", comédia que estréia em São Paulo dia 29, Mauro Rasi é tão engraçado em cena quanto fora dela, "entre quatro paredes", como diz.
É tido como ótimo intérprete das suas próprias peças, em leituras dramáticas. Em entrevista, está sempre rindo e fazendo rir.
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Folha - Você saiu de Bauru, foi para Paris, foi preso em 68. O que fez voltar e escrever para teatro?
Mauro Rasi - O meu pai escreve. É um graaande escritor de Bauru. Tem peças maravilhosas. Tem uma chamada "Papai Noel meu Ouviu", que é sempre montada no Natal, uma obra-prima. Se fosse feita pelo Pedro Cardoso... O meu pai é o precursor do besteirol. Tem uma outra que eu invejo, "O Crime do Doutor Alvarenga". Eram grandes sucessos, em Bauru. Na Sociedade Italiana Dante Alighieri. Eu queria imitar o meu pai, superar o meu pai.
Folha - Ele era um comediógrafo?
Rasi -Não, o meu pai tem loja de ferragens. É um comerciante.
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"Pérola" é muito engraçada, mas foi escrita diante de uma tragédia, a morte da mãe do próprio Mauro Rasi. É outra peça confessional, junto com a trilogia iniciada por "A Cerimônia do Adeus", apresentada em São Paulo no início da década.
Levada ao cartaz no Rio, onde foi talvez o maior sucesso do ano passado, "Pérola" celebrizou Vera Holtz no papel cômico, hilariante, da mãe.
Mas o autor, claro, ainda não consegue, nem poderia, descrever com humor a sua própria comédia.
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Folha - Sobre "Pérola", você fechou a trilogia...
Rasi - "Pérola", na verdade...
Folha - ... segue no mesmo tema.
Rasi - Segue no mesmo tema. Poderia ser a quarta peça de uma tetralogia ou pode ser o resumo de tudo, com uma ótica mais.. eu não queria usar a palavra "verdadeira". As outras três, elas se ocultam atrás do biombo da ficção, que a "Pérola" não tem. Tanto é que Pérola é o nome da minha mãe. Então, poderia ser a quarta peça, como pode ser a soma, ou mesmo a origem. Quem sabe até se você pode apagar as outras e ficar só ela. Ela tem uma personalidade própria. Talvez até mais do que as outras.
Folha - No sentido de estar sempre progredindo, como você falava?
Rasi - É difícil para mim. É como estar falando de filhos. Eu vou dizer "todos eles são iguais". Digamos que as outras são motivadas pela memória e a "Pérola"... Ah, agora eu acho que vou verbalizar legal. Nas outras, eu tenho todo o distanciamento para falar daquilo sem pudor. Com a "Pérola" eu fui envolvido por um fato importante no meu teatro, e que me inspirou.
Folha - Sua mãe.
Rasi - Ela é a mãe do meu humor. Se contar cinco ou seis casos dela, você vai ver uma visão que ela tinha do mundo e que é o que eu chamo de riqueza -e que eu não quero perder nunca. Mas então aconteceu um fato concreto. A morte. Quer dizer, a morte colocou um ponto final nisto que sempre me embalou, que sempre me inspirou, que eu sempre critiquei -e que de certa forma eu sempre girei em torno. Foi um fato concreto. Eu já não estava mais lidando com a memória. Eu estava lidando com algo irreversível e que não iria mais, pelo menos nesta vida, se repetir. O jogo acabou.
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O dramaturgo relata então um episódio que, segundo ele, levou "Pérola" a ser escrita "num atimozinho".
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Folha - Quando foi?
Rasi -A gente estava voltando do enterro dela, e ela sempre foi uma pessoa muito coquete, adorava festa, coquetel, muito Campari. Era uma italiana, tinha um metro e meio, os olhos cor de violeta, que eram os olhos da Ava Gardner. Era muito bonita. A minha família é da Toscana, e as toscanas são consideradas as mulheres mais belas da Itália. Mas eu voltei do enterro e fui com minha irmã limpar os vestígios mais contundentes da presença dela.
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A cena está na comédia. Os dois irmãos encontram uma garrafa de vodca na geladeira e choram melodramaticamente.
Depois o filho vai à piscina, que é onipresente na peça, e descobre uma tabuleta ao lado do bar, presa só por um elo da corrente.
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Mauro Rasi - Era como se aquela correiazinha estivesse se rompendo e o dizer, "se vida der um limão, faça uma caipirinha", fosse a filosofia pela qual eu fui educado. A filosofia do "toca pra frente", "vai pra frente", é o que está impresso na tabuleta. Tudo em casa era "dá um banho nele que acaba a frescura". Ou então ameaçar com enxada, "dá uma enxada que ele vai ver só". E aquilo ter rompido no dia da morte dela. Quando eu vi eu senti um aperto no coração tão grande, olhei para cima e vi uma estrela brilhando, refletindo na piscina. Naquele instante a peça ficou pronta.

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