São Paulo, terça-feira, 6 de fevereiro de 1996
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Pavarotti fala da dor pela perda do Fenice

DO "LA STAMPA"

"É uma notícia terrível. Sinto-me mal. Estou chocado, transtornado, comovido. É justo que eu saiba imediatamente. Um teatro que morre me angustia. Do Fenice tenho recordações maravilhosas. Lá cantei o 'Ballo in Maschera', uma das minhas três óperas preferidas. No Fenice dirigi 'Favorita', única de minha vida. Conheço aquele palco metro por metro. É uma dor terrível."
Já era noite avançada quando avisamos Pavarotti sobre o incêndio que devorou o teatro veneziano. O dia do tenor havia sido belíssimo, vivido intensamente no Teatro Regio, com a apresentação da "Boheme dei Cento Anni".
Mas, à noite, o dia se transformou numa dramática emoção: enquanto um teatro, o Regio, está vivendo seu momento mais bonito e celebra um acontecimento histórico, um outro, La Fenice, morre.
Um teatro esplêndido, aquele veneziano, meta dos amantes da lírica do mundo todo, com uma vital história, que agora foi inexoravelmente morto por um incêndio, cuja causa talvez seja um curto-circuito.
O Fenice, no século passado, enriqueceu os grandes compositores italianos, de Rossini a Bellini e Donizetti, mas sobretudo Giuseppe Verdi, a quem encomendou cinco obras de arte: "Ernani", "Attila", "Rigoletto", "Traviata" e "Simon Boccanegra".
Um teatro devorado pelas chamas. A belíssima, disputada sala italiana projetada e realizada pelo arquiteto Giannantonio Selva, ornamentada por painéis pintados, enriquecida de decorações e estuques, entalhes dourados, não se reconstrói facilmente.
O prospecto neoclássico era precedido por uma escadaria e aberto embaixo por um átrio e por quatro colunas coríntias, coroado por um balaústre. Dos lados do palco havia nichos com estátuas alegóricas e atavios em relevo.
Para Veneza é um golpe mortal. Será preciso a sagacidade, o trabalho febril dos venezianos para reconstruí-lo o mais rápido possível.
Um teatro que é o ponto de encontro entre a cultura musical do Oriente e o Ocidente, com um símbolo, um mítico pássaro que renasce das próprias cinzas e que hoje aparece como um trágico presságio.
Mas a história do Fenice, assim como aquela de outros teatros, já foi assinalada por dramáticos eventos. O maior teatro veneziano foi destruído em 1816. E nestes últimos anos foram também devorados pelo fogo o Petruzzelli, de Bari, e, na Espanha, o Gran Liceu di Barcelona, poucas horas depois de Domingos lá ter cantado.
*
Pergunta - Maestro, diante desta tragédia, o que o sr. sente?
Resposta - Um teatro que morre me enche de dor. Do Fenice tenho recordações maravilhosas. Ali cantei o "Ballo in Maschera", uma das minhas três óperas preferidas, dirigi "Favorita", única da minha vida. Conheço aquele palco por tê-lo percorrido metro por metro. É uma angústia insuportável.
Pergunta - O Fenice era um dos mais belos teatros históricos.
Resposta - Arquitetonicamente era uma jóia, seguramente o mais belo teatro italiano, com aquela cor celeste claro, delicadíssimo. Espero de todo coração que não tenha morrido, que esteja apenas ferido. O teatro tem sua alma, deve viver eternamente. Tem que ressurgir brevemente. Veneza tem de reavê-lo a todo o custo e o mais rápido possível. Todo o mundo lírico se sente órfão com tal perda.
Pergunta - O que significa Veneza sem o Fenice?
Resposta - É como um corpo sem alma. Uma cidade mutilada, mas me recuso a pensar que o dano seja irreparável.
Pergunta - Que sentimento o liga, particularmente, a Veneza?
Resposta - Uma ligação fortíssima, porque através do Fenice aprendi a conhecer a cidade, sua gente, sua cultura. E depois, no Fenice, cantava-se bem, a sua acústica era estupenda. Outro dia em Turim me perguntaram como se podia melhorar a acústica de um teatro. Respondi somente com uma frase: "Copiem o Fenice".
Pergunta - Como era o Fenice, visto pelo palco?
Resposta - Visto pelo palco era um teatro maravilhoso, como um móvel de 700. A sala era majestosa, belíssima, diferente dos cânones arquitetônicos usuais, mas com um fascínio indescritível. Naquela sala nos sentíamos protegidos, como em casa. Os venezianos amam o seu teatro, assim como amam a Piazza San Marco. Um símbolo exclusivo.
Pergunta - Para um artista como o sr., com recordações de vários teatros do mundo, o que resta depois dessa notícia?
Resposta - Um artista traz consigo todas as emoções que cada teatro deixa. E são recordações que duram toda a vida. Pense em como me sinto agora com as chamas do Fenice diante dos olhos. Estou transtornado, com este pensamento fico mal. Desculpem, estou mal.

Tradução de Anastasia Campanerut

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