São Paulo, sexta-feira, 9 de fevereiro de 1996
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Políticos se entregam à criação de 'fatóides'

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O prefeito do Rio de Janeiro, César Maia, foi bastante ironizado pela sua teoria dos "fatóides". Fatóides, segundo a terminologia dele, seriam aqueles fatos sem relevância que as personalidades públicas volta e meia se interessam em produzir e a imprensa em noticiar.
Jânio Quadros um belo dia deixou crescer a barba, para manifestar sua admiração por Abraham Lincoln. Fatóide. Carlos Menem, presidente argentino, resolveu jogar basquete. Fatóide. César Maia, no auge do calor carioca, defendeu o uso de pulôveres de cachemira. Fatóide. O prefeito do Rio defende a estratégia. Ele tem razão.
Governo, imprensa e opinião pública parecem incapazes de sobreviver sem que surjam pseudo-acontecimentos, polêmicas ridículas, escândalos sem importância. A primeira reação do observador sério é a de culpar a imprensa pela irrelevância do que se noticia. As fofocas da família real inglesa, por exemplo, ajudam mais a denegrir a imagem da imprensa do que a da Rainha Elizabeth. Frivolidade de jornalistas sem assunto...
Os jornalistas reagem, dizendo que o público se interessa por escândalos desse tipo, e nada mais fazem senão cumprir com seu dever de informar. Em parte, isso é verdade. Em parte, não. Claro que os meios de comunicação alimentam o interesse do público, despertam curiosidades perversas, e daí não adianta dizer que estão apenas oferecendo ao consumidor o que este pedia.
Não existe "liberdade do consumidor" num mundo administrado totalmente pela propaganda. Necessidades se criam, se produzem. Atender às necessidades não é tarefa inocente; é apenas o efeito planejado de uma estratégia mercadológica. Ainda que esta tenha seus riscos, e que o comportamento do consumidor não seja tão previsível.
Mas a culpa desse besteirol cotidiano não cabe à imprensa, nem ao público, nem às personalidades envolvidas. Os "fatóides" prosperam, a meu ver, por uma razão estrutural. Trata-se de um processo duplo, a saber, o de que a história se acelera e paralisa ao mesmo tempo.
A história se acelera: estamos às voltas com uma avalanche de inovações; o que existia há três anos não existe mais, o programa de computador que você está usando já é uma relíquia, remédios contra gastrite e terapias contra angústia surgem de mês em mês, igrejas são abertas e fechadas, países inteiros aparecem e desaparecem.
Mas a história se imobiliza também enquanto isso. Revoluções se revelam inócuas, tentativas de mudar o mundo se chocam contra a psicologia individual e contra as determinações obscuras da natureza, da cultura, da economia, palavras quase sinônimas atualmente.
Torna-se natural, portanto, que personalidades públicas e chefes de governo se entreguem à criação de "fatóides". Têm de fazer alguma coisa -pois a demanda de novidades é crescente- e ao mesmo tempo sabem que podem fazer muito pouco de fato. O mais fantástico projeto social, o mais bem-intencionado programa de proteção aos menores carentes demora tantos anos para funcionar que quando vier a dar frutos será apenas uma entre muitas causas do progresso registrado. Se é que vai ser registrado.
Os "fatóides" significam a apropriação, pelos políticos, das técnicas de marketing. Foi-se o tempo em que a esfera pública, o âmbito das discussões ideológicas e filosóficas, girava em torno de questões relevantes. A ausência de calcinha numa mulher é mais comentada do que a reforma da Previdência.
É mais interessante de comentar, uma vez que não exige cálculos de orçamento, embates de princípio, firulas constitucionais. Sintoma maior de nossa época é a indisposição para qualquer atitude concentrada, reflexiva. O imediato, o incomentável, o fatual "tout court", ou seja, o acontecimento que explode como um fogo de artifício -o "fatóide"-, preenche o vazio, como se algo precisasse surgir diante dos nossos olhos depois de um muro derrubado.
Há uma infinitude de horizontes diante dos indivíduos. Infinitude é, entretanto, sinônimo de vazio. Os românticos, no século 19, sentiram isso. Pois a revolução de 1789 abolira as distinções de nobreza; eliminara as barreiras sociais, assim como agora, depois da queda do muro de Berlim, eliminam-se os impedimentos à plena expansão do mercado.
Os românticos se entregaram à contemplação do deserto, da natureza, de algo que fosse ilimitado, nauseante e sedutor. Nós, modernos, procuramos o "evento", a "novidade", o "ato" -memórias, na verdade, do ato, do evento, da novidade por excelência, que teria sido a revolução socialista. Mas também emblema vazio, figurado, de todas as novidades que nos chegam pela propaganda e pela TV.
Não é por acaso, assim, que apareçam "fatóides" todo dia. Comento alguns.
A fusão entre a Kolynos e a Colgate. Meu Deus. Estão certos os que desconfiam de uma cartelização do mercado, de um enfraquecimento da concorrência comercial. Mas meu depoimento vai em sentido oposto. Nunca reparei se a pasta de dente que eu estava usando era Kolynos ou Colgate. Tenho sido, ao longo dos anos, de uma total imparcialidade nesse aspecto. Se querem se fundir, tudo bem, já estavam antes dissolvidas na minha escova.
Outro fatóide: os protestos contra Madonna, na Argentina, porque ela vai encarnar Eva Perón num filme. Começo a perceber que o grande mérito de Madonna é despertar polêmica junto a um público de idiotas. Só um idiota se escandalizaria com o fato. Madonna idiotiza a polêmica, revelando os idiotas dispostos a entrar nela. O mesmo para Michael Jackson. São válvulas de escape para um fascismo latente, e nada dizem de realmente polêmico para quem tem a cabeça no lugar.
O melhor fatóide dos últimos tempos, entretanto, é a iniciativa de trazer as touradas ao Brasil. Rita Lee protestou, nesta quarta-feira, contra o projeto. Não é um projeto: é a invenção factoidal de um empresário criador de touros.
Antonio Callado, neste espaço, já se pronunciou contra as touradas. Não resisto a dar minha opinião. Tourada não cola no Brasil. Mas não é que não cole porque sejamos protetores dos animais. Não cola porque não temos estofo cultural para a empreitada.
Sempre achei que touradas eram um costume bárbaro, sangrento, sádico, inquisitorial: nossa imagem da Espanha. Até que vi cenas de tourada transmitidas pela TV a cabo. A beleza de tudo aquilo supera qualquer consideração do gênero "touro também é gente".
Muito ao contrário. Nesse rito popular e épico, o que se mostra é a vitória do Homem sobre o Touro. Se você acha que é covardia, pegue uma capa e vá lá enfrentar o bicho. É coragem. Mais do que coragem, é a vitória da técnica sobre a bestialidade da natureza.
Quanto mais devagar, "más despacio", o toureiro executar suas manobras, mais bonita é a tourada. A massa bestial de músculos, o volume negro e enfurecido do touro se deixa enganar pelos meneios, pelas farsas femininas e voleios reluzentes, pelas seduções baratas do toureiro. Ele é feminino, dengoso, pura astúcia sexual e atrativa a dominar a besta.
Touradas são cultura, no que há de cultura no fato de um homem dominar a natureza, ou de uma mulher (o toureiro) dominar o instinto (masculino) do touro. E também são cultura pelo que há de conhecimento adquirido, de vocabulário nos gestos e passagens de capa, de possibilidades de inovação e reacionarismo no estilo, de conhecimento do público.
Não nos tornaremos bonzinhos ao proibir touradas. Só que, aceitando-as, seremos uma vez mais passíveis da acusação de macaquice. Isso é ser contrário ao que a tourada significa. Fatóide, esse da tourada em todo caso. A História real, essa do Homem contra um Touro Cego -o acaso, o azar, a biologia-, prossegue na areia ensanguentada da praça; e desconfio que estamos perdendo.

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