São Paulo, sexta-feira, 9 de fevereiro de 1996
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Barbaridades jurídicas dos três Poderes

SAULO RAMOS

Deus meu, o Brasil está sendo vítima de uma perigosa, fantástica e generalizada epidemia de ignorância jurídica como nunca dantes navegada. Não quero me referir àquele advogado maluco, que ajuizou ação popular contra a filmagem de Michael Jackson no Rio de Janeiro, posto que qualquer estudante de direito sabe que esse tipo de processo jamais poderia ser proposto contra um particular e, muito menos, para impedir a liberdade pessoal de criação e de expressão.
Ação popular é privativa contra ato administrativo que seja ilícito e, ao mesmo tempo, lesivo às finanças públicas. Se o juiz admitiu o processo e concedeu liminar, conta-se mais um ignorante, não muito raro naquelas bandas, onde os sofridos tribunais não ficam à toa na vida vendo a banda passar.
Feia, de arrepiar, está a epidemia nas altas cúpulas do poder, precisamente nos setores responsáveis pela guarda da legalidade e do direito. Há pouco tempo o presidente da República enviou um projeto de lei ao Congresso criando subsidiária de uma estatal (exigência boba do constituinte, depois que ele próprio colocou as estatais sob o regime do direito privado, mas deixa pra lá...).
No Legislativo o projeto foi alterado por meio de duas emendas supressivas, que retiram do texto dispositivos (artigos, incisos ou parágrafos). Subiu à sanção do presidente e ali chegou inteirinho, tal como estava no antigo original, constando, com todas as letras, os incisos suprimidos pelo Congresso.
E mereceu a sanção presidencial. Logo, os que forem prejudicados pela nova lei poderão fulminá-la demonstrando a inconstitucionalidade formal, algo semelhante, se praticado pelos pobres mortais, à falsidade ideológica.
Pior, muito pior, deu-se com o projeto de grande importância pública, o Código de Trânsito Brasileiro, que irá substituir o Código Nacional de Trânsito, aprovado na Câmara dos Deputados e agora tramitando no Senado Federal.
A Constituição (art. 58, inciso I) permite às comissões do nosso parlamento a aprovação de projetos, dispensando a competência do plenário na forma regimental. Uma comissão especial da Câmara, invocando essa prerrogativa, aprovou o projeto e o remeteu ao Senado, sem votação do plenário. Acontece que o regimento interno, que integra aquele comando constitucional, exclui expressamente, dessa prerrogativa das comissões, os projetos de códigos (art. 24, inciso II, alínea "b").
E agora? Se transformado em lei, a nulidade será total, do primeiro ao último artigo, registrando-se que o projeto cria algumas sanções penais. O primeiro que for preso ou multado, com fundamento em lei nula, de inconstitucionalidade formal, terá seu advogado invocando o erro parlamentar e o Judiciário implacavelmente vai declarar a nulidade absoluta da prisão, da multa e da lei.
Fica aí a lembrança aos coleguinhas se essa coisa passar despercebida no Senado, pois o relator do projeto na Câmara Alta é o senador Gilberto Miranda, atento e competente, mas atualmente muito ocupado com a pauleira no caso do Sivam.
Outra enormidade, de mexer com os ossos de Rui Barbosa, Vicente Ráo e Pontes de Miranda e com os nossos muito mais sagrados bolsos, está em resoluções do Conselho Monetário Nacional (leia-se Malan, Serra e Loyola), principalmente naquela de nº 2.197/95, quando dispõe que o mecanismo de proteção ao crédito contra instituições financeiras "de que trata esta Resolução, funcionará enquanto não regulamentado, pelo Congresso Nacional, o art. 192, da Constituição". Fazem besteiras, mas com que coragem!
O Conselho Monetário Nacional, portanto e diante da inércia do Poder Legislativo, resolveu editar lei complementar, de competência exclusiva do Congresso Nacional. Se a Constituição submeteu à lei complementar (tal como o fez com os juros reais de 12% ao ano) a regulamentação do sistema financeiro nacional, não admite nem sequer a lei ordinária para tal fim.
É assim? Então tome portaria no lugar de lei complementar, ato normativo mais ordinário do que a lei. E o Congresso, diante dessa incrível usurpação de sua competência, finge que não sabe existir o inciso V, do art. 49 da Constituição, que lhe dá o poder e, portanto, impõe-lhe o dever de sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar.
Não param por aí as dolorosas heresias. O Supremo Tribunal Federal, por decisão isolada de uma turma, decretou a inconstitucionalidade de uma lei municipal, num caso concreto, e mandou expediente para o Senado suspender a norma.
Meu amigo José Sarney, querido poeta e agora internauta, está sendo "levado" nessa barafunda porque não foi advertido de que o Supremo somente pode pedir a suspensão de vigência de lei quando a decisão é do plenário do augusto Tribunal e, mesmo assim, o Senado não é obrigado a atender à solicitação, em respeito à soberania política do Legislativo. Mas o processo de suspensão está andando... Sarney, olho na rapaziada, mande o processo de volta! Poeta pode ser distraído por abstração, mas bobo não será jamais.
Agora pretende-se misturar, entre as necessárias reformas constitucionais, a permissão de reeleição de prefeitos, que seria promulgada no próprio ano dos pleitos eleitorais ou alguns meses antes das eleições. A Constituição, porém, no artigo 16, exige que a regulamentação legal, que altera o processo eleitoral, tenha vigência mínima de um ano antes do pleito. É disposição permanente do nosso chamado contrato social.
Sim, eu sei que o comando se dirige à lei e não à emenda constitucional, permanente ou transitória. Mas o casuísmo da reforma constitucional, nessa proposta de reeleição-já, fere fundo a sistemática do direito constitucional adotado pelo constituinte de 1988, até porque não deixa margem para a regulamentação legal sobre as desincompatibilizações. Gosto de vários dos atuais prefeitos, inclusive do Paulo Maluf, em quem votei e votaria outra vez. Mas, infelizmente, meus sentimentos pessoais não interferem com a fidelidade que cultivo à ciência do direito.
Todos os brasileiros têm o dever de desmentir, permanentemente, aquela célebre frase atribuída ao general De Gaulle, que teria dito não ser o Brasil um país sério. Em matéria jurídica está difícil. "Très difficile, mon general".

JOSÉ SAULO PEREIRA RAMOS, 62, é advogado em São Paulo. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney).

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