São Paulo, sábado, 10 de fevereiro de 1996
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Poesia de Manoel de Barros está de volta

JOSÉ GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

O poeta mato-grossense Manoel de Barros, 79, está com um novo livro de poemas praticamente pronto: "Contemplação dos Detritos" (leia trecho inédito ao lado). "Já escrevi tudo, agora só estou tenteando", disse o autor à Folha, por telefone, de sua casa em Campo Grande (MS).
Qualquer que seja a editora escolhida, ela deve receber os originais do autor até abril, o que torna provável a edição do volume em meados do ano.
Ainda no primeiro semestre deverá ser publicada também uma seleção de poemas do escritor, em edição de arte com tiragem limitada, pela Sociedade dos Bibliófilos do Brasil (leia abaixo).
"Contemplação dos Detritos" será o 12º livro publicado por Barros, autor que conquistou renome nacional somente depois dos 60 anos e que divide seu tempo entre a escrita e a criação de gado numa fazenda próxima a Corumbá (MS).
Memórias
Segundo Barros, este seu novo livro traz recordações de sua infância no Pantanal. "Depois de velho, a minha infância voltou. No livro, falo da minha formação naquele lugar isolado e do meu sentimento de isolamento", afirma.
Mas que ninguém espere uma espécie de autobiografia em versos: "Não conto nada na reta, escrevo sempre nas linhas tortas, como digo aliás num poema. Na minha poesia parece que tem muita coisa de fora, mas é tudo de dentro. Sou muito preparado de conflitos".
"Contemplação dos Detritos" divide-se em quatro partes, que podem ser vistas como longos poemas subdivididos em fragmentos, formato frequente nos últimos livros do autor (o mais recente é "O Livro das Ignorãças", de 1993).
Uma dessas partes ainda não tem título. As outras três são: "As Árvores me Começam", "Desejar Ser" e "Os Outros: o Melhor de Mim Sou Eles".
O título da segunda parte inspira-se, segundo Barros, "num texto de Antonio Vieira que diz: O maior apetite do homem é desejar ser".
Manoel de Barros não sabe dizer quantas páginas terá o livro. "Eu conto por versos: vai ter entre 380 e 400 versos", diz o autor, que já foi chamado de "poeta do Pantanal" e "Guimarães Rosa da poesia".
Diálogo com Rosa
A realização de "Contemplação dos Detritos" surgiu, aliás, do adiamento de um velho projeto de Barros: um livro de diálogos imaginários entre ele e o autor de "Grande Sertão: Veredas".
"Eu tinha prometido aquele livro ao meu amigo Enio Silveira (ex-editor da Civilização Brasileira, morto recentemente). Já tinha até título: 'No Sertão, no Pantanal: Conversamentos com João Guimarães Rosa'. Mas reli a obra do Rosa e fiquei muito impregnado dela, percebi que só estava conseguindo fazer um pastiche, fiquei com raiva, rasguei tudo", diz Barros, que já tinha escrito oito capítulos.
"Minha intenção tinha sido inventar frases minhas e frases à maneira de Rosa para compor o diálogo, mas quando vi as minhas também pareciam de Rosa", afirma.
Nessa crise de identidade poética provocada pela relação com Guimarães Rosa, Manoel de Barros sentiu a necessidade de fazer um livro de poesia que fosse muito pessoal. Assim surgiu "Contemplação dos Detritos".
Cumprido o exorcismo, agora o poeta mantém aberta a possibilidade de reescrever os diálogos com Guimarães Rosa, com quem se encontrou brevemente durante uma viagem do escritor mineiro ao Pantanal e depois umas poucas vezes no Itamaraty.
Instado a opinar sobre a anunciada publicação do livro de poesia "Magma", de Guimarães Rosa, pela Nova Fronteira, Manoel de Barros não hesitou em condená-la abertamente.
"O 'Magma' não tem nada a ver com o Rosa. É uma judiação fazer isso com ele, porque ele não estava maduro ainda quando o escreveu, e por isso nunca quis publicá-lo. A poesia do Rosa se realiza na sua prosa, que aliás foi se tornando cada vez mais poética."
Dialeto do Pantanal
Em comum com o autor de "Sagarana", Manoel de Barros cultiva o gosto pelas expressões populares. "O Câmara Cascudo dizia que o povo é a melhor universidade. O povo inventa muito mais que os poetas", diz Barros, que chegou a projetar um dicionário do quase-dialeto do Pantanal.
"No isolamento da região, onde só chegava a cavalo ou carro de boi, formou-se o que os especialistas chamam de 'ilha linguística'. Cheguei a colecionar umas 500 expressões desse linguajar. Mas logo vieram os caminhões, veio o rádio com as músicas de Roberto Carlos, e tudo aquilo acabou", relembra o poeta, com uma ponta de amargura.
Esse dialeto extinto sobrevive na poesia de Manoel de Barros: "Dentro dos meus versos há muita expressão arrancada dali, dessa torta sintaxe popular".

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