São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 1996
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Rio, capital Buenos Aires

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Será que o sol de verão anda cozendo miolos no Rio de Janeiro? Primeiro foi a discussão dos cachês pagos na festa de réveillon da cidade, depois essa loucura em torno da filmagem que Michael Jackson e Spike Lee devem fazer no morro Dona Marta.
Enquanto em Salvador a visita da dupla foi encarada com a importância que tem -que não é tanta assim-, no Rio, políticos, governantes, um juiz e bobocas de plantão reagiram como ofendidas senhoras provincianas diante da idéia do clipe na favela, para divulgar a canção "They Don't Care About Us", sobre o abandono de populações marginalizadas.
Queriam esconder o quê? O que qualquer criança sabe? Que o Estado é incompetente, que as "autoridades" não dão a mínima para os favelados, que os habitantes do Dona Marta são miseráveis submetidos ao fogo cruzado do tráfico e da polícia?
Que o governo não tem controle sobre o território público, que o Exército colocou tanques e soldados nas ruas, e não conseguiu nada, que policiais vendem drogas para ricos, ganham dinheiro de traficantes, não têm a confiança dos cariocas e protagonizam cenas de violência mundialmente conhecidas -como a execução sumária, diante de um shopping, de um ladrão deitado no asfalto?
Que a delegacia criada para combater sequestros era a principal responsável pelos próprios? Que o Comando Vermelho controla as prisões e que o governo é incapaz de garantir a vida de gente como Caio Ferraz, de Vigário Geral, que fugiu para os EUA?
Quem não sabe disso? Tivessem os senhores que mandam oficialmente no Rio (já que não se sabe mais quem manda ali de fato) feito alguma coisa em favor dos favelados e poderiam mostrar no clipe e na TV. Mas não fizeram e não fazem nada. Portanto, não podem mostrar nada.
Só há para se ver o Haiti que mantêm nas encostas da "cidade maravilhosa", onde os serviços públicos não funcionam, o prefeito posa de maluco em público, o governador preocupa-se com jovens de classe média fumando maconha na praia, enquanto jovens negros de classe baixa são vítimas de chacinas e tornam-se assassinos em idade de andar de patins.
E vêm com essa história de "exploração da imagem do morro" e outras bobagens em tom solene.
Tivessem um mínimo de argúcia, as "autoridades" do Rio poderiam transformar a visita do cantor em divulgação positiva para a cidade. Mas conseguiram despertar a desconfiança geral de que estavam tentando simplesmente, à moda de pequenos tiranos de repúblicas de bananas (ou personagens da tira "Los Três Amigos"), tapar el suel con la penera.
Jornais brasileiros, correspondentes estrangeiros, fãs na Internet -todos perceberam a falseta. Diante das críticas gerais, tentou-se consertar o enredo.
Um governador com cara passada surgiu na TV para dizer que receberia o cantor de braços abertos e promoveria todas as condições para que o clipe fosse feito.
Mas aí, o episódio já se transformara em estúpida piada de jeca. Coisa de cidade pequena, porém decente. Para completar a opereta bufa só faltou o balé Bolshói ser convidado para o show -e o Armando Falcão ressurgir das cinzas para tentar acabar com a festa.
Surto semelhante ocorreu na Argentina, em torno das filmagens da vida de Eva Perón, a Evita, a ser vivida por Madonna.
Se no caso do Rio tratava-se de resolver a realidade impedindo sua aparição, em Buenos Aires tentava-se evitar a profanação do mito pela imagem de sexo e mundanidade da artista responsável pela representação da personagem.
Argentinos fazem sinal da cruz e acendem velas para fotos de Evita, a Nossa Senhora do populismo.
Nos dois casos, a mesma paranóia em relação ao estrangeiro e a mesma insegurança diante da confusão entre realidade, mito e representação.

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