São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 1996
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Eine grosse sakanage...

ROBERTO CAMPOS

É com essa mistura da língua de Goethe com um expletivo de Macunaíma, que um velho amigo alemão, apaixonado pelo Brasil, se queixava de nossas aberrações de comportamento: leis que não "pegam", impostos sem contrapartida de serviços, descumprimento de promessas, de contratos e de horários.
"Uma bagunça adorável", dizia ele, porque adoçada com cordialidade tropical. Mas certamente inibidora do progresso sustentável.
A marcha acelerada do Brasil para o neoliberalismo só existe na imaginação de esquerdistas frustrados ou socialistas nostálgicos.
A flexibilização dos monopólios federais de telecomunicação e petróleo, assim como a abolição da discriminação constitucional contra empresas estrangeiras e a abertura da cabotagem, foram vitórias liberais no plano ideológico.
Mas até agora não tiveram consequências práticas no plano operacional. O liberalismo ainda não nasceu. E o nacional-corporativismo ainda não morreu. "Eine grosse sakanage"...
Isso é lamentável porque o Plano Real, promissor e popular, atravessa uma zona de turbulência.
A situação fiscal do setor público consolidado se deteriorou enormemente ao longo de 1995.
De um saldo operacional de 1,1% do PIB em 1994, passamos a um déficit de mais de 4% em 1995, com crescimento explosivo da dívida pública.
A experiência latino-americana e, aliás, a experiência internacional, tem revelado que a âncora eficaz dos planos duradouros de estabilização é sempre a âncora fiscal.
A política cambial e a política de juros -que, à falta de outros instrumentos, têm sido habilmente manipulados pela equipe econômica- são bóias de amarração antes que âncora de fundo. Bóias úteis, mas de fácil desgarre pelas próprias turbulências que provocam...
O saneamento fiscal do setor público consolidado tem de ser encarado sob dois aspectos: o do "fluxo" e o do "estoque".
As reformas propostas pelo governo -a administrativa, a previdenciária e a fiscal- são indispensáveis para se resolver o problema do fluxo: conter daqui por diante o endividamento do Estado.
Para reduzir-se o "estoque" da dívida (que está na raiz dos altos juros) só existe uma solução possível: a aceleração das privatizações, tanto ao nível federal quanto estadual.
Isso teria, aliás, um subproduto útil. Parte do capital estrangeiro volátil, oriundo de fundos mútuos de investimento ou de pensão, poderia ser induzido a se transformar em investimentos permanentes na infra-estrutura.
É, assim, incompreensível o ritmo pachorrento das privatizações. Essa tem vários inimigos: o corporativismo das estatais, que sonegam dividendos do Tesouro para engordar seus fundos de pensão; os socialistas nostálgicos, que resistem ao emagrecimento do Estado; os nacionalistas obsoletos, que desejam preservar as riquezas naturais num mundo em que as verdadeiras riquezas são artificiais - educação e tecnologia.
E há os perfeccionistas, divididos em dois grupos: os que defendem a lentidão em nome da "transparência", esquecidos de que nada mais transparente do que a competição dos acionistas nos leilões de Bolsa; e os "reformatadores", que querem reorganizar as empresas para vendê-las melhor, esquecidos de que as reestruturações são incertas e caras e não compensam os custos da rolagem das dívidas.
A flexibilização do monopólio de telecomunicações foi votada pelo Congresso em 15/08/95.
Somente quatro meses depois, quase ao fim da seção legislativa, chega ao Congresso o projeto de abertura da telefonia celular a investidores privados.
É uma lei chamada "mínima", de uma página e meia, que um perito em telecomunicações e um advogado mediano poderiam ter redigido em meia hora!
E esse projeto cria uma reserva de mercado para "empresas brasileiras com 51% de capital nacional", restabelecendo uma discriminação entre "empresas brasileiras de capital nacional" e "empresas brasileiras de capital estrangeiro" que se tornou inconstitucional com a revogação do art. 171 da Constituição de 1988.
A nova definição de "empresa brasileira", segundo os artigos 170 e 176 da Emenda Constitucional nº 8, é aquela "constituída sob as leis brasileiras e que tem a sua sede e administração no país".
Até parece que o Brasil não tem escassez de poupança, que não há dois milhões de brasileiros na fila dos celulares, que não precisamos acelerar a criação de empregos e a absorção de tecnologias!...
O projeto de flexibilização do petróleo não chegou ainda ao Congresso. Mas sabe-se que o anteprojeto é também "eine grosse sakanage".
A Emenda constitucional nº 9 (9/11/95) não exige que a Petrossauro continue estatal. É o projeto de lei que assim o dispõe, imprudentemente aliás, porque os megapassivos do Governo podem tornar necessária a venda de seus mega-ativos.
Pior que isso, o projeto se esmera em tornar pouco atraente a concorrência privada, em virtude das muletas que mantêm em favor do dinossauro.
Assim, até que se complete a desregulamentação dos preços de petróleo, a Petrossauro só pagará 5% de "royalties", enquanto que os concorrentes teriam de pagar o dobro.
A construção de refinarias não será livre, respondendo às forças do mercado. Dependerá de um "Plano Nacional de Refino", formulado por tecnocratas em Brasília, sujeitos a pressões políticas e brigas regionais.
E vulneráveis a injunções da Petrossauro para proteger suas refinarias, algumas obsoletas. São excluídas da licitação por três anos, não apenas os blocos em que a Petrossauro tenha iniciado exploração efetiva -o que seria compreensível- mas quaisquer áreas em que tenha "definido" estruturas geológicas.
Isso lhe daria uma reserva de mercado sobre amplíssimas áreas nas quais tivesse feito uma barata mini-explosão sísmica.
O razoável seria exigir-se dela, como de qualquer outro concessionário, um cronograma de investimentos que, se descumprido, resultaria em reversão da área ao poder concedente para ulterior licitação.
Abundante em pormenores regulatórios, o anteprojeto é omisso no fundamental: isonomia no tratamento fiscal dos concorrentes, porque hoje a Petrossauro goza de isenção de Imposto de Renda e nunca pagou taxas de exploração.
Segundo o anteprojeto, não haverá também liberdade de importação nem liberação de preços, condições necessárias para atrair investimentos privados em refino e prospecção.
Fala-se apenas numa "transição gradual para um regime de preços", ficará tudo na dependência de dois planos fabricados pela tecnocracia: o "Plano Nacional de Abastecimento" e o "Plano Anual de Importação e Exportação".
É a velha mania dirigista do planejamento central, que arruinou os países socialistas.
O setor privado é muito mais ágil e bem informado do que o governo para reagir às demandas atuais e previsíveis do mercado.
Serviço público no Brasil é sinônimo de serviço escasso. Toda a vez que o governo formula planos nacionais de abastecimento, o desabastecimento se torna melancólica certeza.
Não há no panorama atual consolo para os liberais ou reformistas autênticos. Mesmo aquilo que se descreve como vitória política - o projeto de reforma da previdência social é modesta meia-sola que garante curta sobrevida a um modelo obsoleto.
A previdência pública compulsória, segundo o modelo de repartição, é antidemocrático pois obriga o cidadão a entregar sua poupança previdenciária a um administrador catastrófico -o governo- coisa cruel para os pobres que não podem comprar previdência complementar.
É anti-social, porque redistribui dinheiro dos pobres para os burocratas e alta classe média, beneficiários de aposentadorias precoces e especiais.
É antidesenvolvimentista porque não serve de alavancagem de poupanças para o crescimento, ao contrário do sistema de capitalização individual privado, que acumula poupanças disponíveis para aplicação produtiva.
Dar sobrevida ao atual sistema, em vez de passarmos ao modelo chileno de capitalização privada, como o fizeram Argentina, Peru e Colômbia, é façanha médica comparável ao tratamento do câncer com aspirina...

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