São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 1996
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Onde você mora?

MARCELO LEITE

O leitor provavelmente mora em uma cidade, como 3/4 da população brasileira e a maioria dos consumidores de jornais. A imprensa é uma instituição urbana, nasceu com a cidade e para ela, mas vem renegando essa ligação umbilical. A Folha, pelo menos, cobre mal os problemas que mais afetam a qualidade de vida de seus leitores.
Trânsito, antes de qualquer coisa. Poluição. Enchentes. Barulho. Buracos. Telefones. Falta d'água. Atendimento médico. Há um pouco de tudo (ênfase no "pouco"), no caderno São Paulo/Cotidiano, um dos mais lidos segundo respostas espontâneas de pesquisas Datafolha. Se for levado em conta o espaço ocupado, porém, parece que só há um grande problema nas cidades brasileiras: crime.
É um caso sério, ninguém duvida. Mexe com um sentimento dos mais importantes, medo. A segurança aparece quase sempre em primeiro lugar nas sondagens sobre prioridades da população, rivalizando com o desemprego (a outra face da moeda da criminalidade).
Uma coisa é discutir segurança, outra é ocupar páginas e páginas com a narrativa mórbida de crimes. Leitura para esse tipo de reportagem sempre haverá, mas jornalismo nunca foi oferecer só ou principalmente aquilo que o comum das pessoas gosta de ler. O que falta na Folha é uma perspectiva mais cidadã, a disposição para meter o dedo e o bedelho nas feridas urbanas, cobrando do poder público soluções para melhorar a vida de quem os sustenta (o governo e a imprensa).
Ou alguém acha que viver em São Paulo, no Rio, é alguma maravilha?
PAS
Dois exemplos de coberturas deficientes do jornal: a subversão do modelo de atendimento municipal de saúde imposta pelo reengenheiro Paulo Maluf (o famigerado PAS) e a preparação da conferência Habitat 2, que será realizada pela ONU em Istambul, no mês de junho.
Como eu, o leitor deve estar insatisfeito com as informações sobre o tal PAS. É quase impossível formar uma opinião esclarecida com o que se publicou até agora no jornal, ao menos para quem não tem de antemão uma posição pró-Maluf ou pró-CRM (Conselho Regional de Medicina, órgão corporativo que move luta sem tréguas contra a reforma do prefeito).
A Folha até agora limitou-se a opor os argumentos -quando não os xingamentos- de parte a parte. Não conseguiu ainda oferecer uma visão independente sobre a disputa, que não é somente ideológica, como pode parecer da leitura do jornal.
Ou o atendimento médico melhora, ou piora. É obrigação do jornal verificar isso e divulgar, contribuindo para o debate público. Mas não adianta só colher duas ou três declarações na porta de um hospital em que se despejaram milhões.
É preciso investigar, sofisticar a apuração. Encontrar especialistas em saúde pública, reconhecidos e sem vinculação política ou ideológica com o prefeito faz-e-acontece ou com o corporativismo dos médicos. Comparar com experiências semelhantes em outros Estados ou no exterior. Isso é muito importante para ficar reduzido a uma troca de insultos entre homens crescidos, que de públicos nada têm, já que se permitem subordinar a saúde da população a seus interesses políticos.
O jornal tem de sair fora desse jogo de cartas marcadas.
Habitat
A conferência das Nações Unidas para debater o futuro das cidades é um bom "gancho" para tentar aprofundar o debate sobre políticas urbanas. A ela se soma a eleição para prefeituras, em outubro, na qual deveria predominar a discussão de propostas. Não será portanto por falta de pretexto que a imprensa negligenciará o tema, ao longo de 1996.
Estou informado de que o tema é prioritário para a Redação da Folha, como deve ser na maioria dos jornais. Mas o que se viu até agora da cobertura da Habitat 2 (realiza-se no momento, em Nova York, a última reunião preparatória) não é muito animador.
Foram selecionados pelo governo federal, por exemplo, 18 projetos de intervenção urbana que serão apresentados em Istambul como modelos brasileiros de boas práticas. A idéia da ONU é criar um repertório de soluções criativas para uso de prefeitos do mundo inteiro.
Na minha opinião, seria um prato cheio para iniciar uma série de 18 reportagens especiais, mostrando em detalhe cada uma dessas experiências. Poderia começar retratando os mutirões de construção deslanchados pela ex-prefeita Luiza Erundina, que ganhou a corrida pela indicação contra o Projeto Cingapura de Maluf.
Até o momento, a Folha optou por apresentá-las em bloco. Domingo passado, entupiu duas páginas do seu terceiro caderno com um indigesto sarapatel de informações superficiais sobre os 18 projetos. Até junho, porém, ainda há tempo de sobra para mandar repórteres conhecerem de perto cada uma dessas práticas exemplares.
É o que o leitor gostaria de ler, acredito, entre um crime e outro.
Cria fama...
O colunista Gilberto Dimenstein fez na edição do último domingo (4/2/96) um ataque enigmático ao ombudsman. O pretexto que usou foi uma defesa contra a acusação de "governista" (que nunca lhe dirigi, mas à imprensa como um todo e à Folha em particular). Sinto que a carapuça lhe tenha servido.
Como não me citou nominalmente, a grave suspeita de manipulação que Dimenstein levantou recairia sobre a instituição do ombudsman. É este o único motivo que me leva a responder a seu tortuoso raciocínio de corte psicológico, exemplo acabado do argumento "ad hominem" há séculos condenado pelos bons polemistas (por se afastar do principal, ao atacar o adversário e não suas idéias).
Minha única resposta a Dimenstein é que muitos jornalistas -como os que me antecederam neste cargo que tenho a honra de ocupar- não avaliam suas carreiras em termos de notoriedade, mas de integridade.

NA PONTA DA LÍNGUA
Em 30 de novembro do ano passado, o leitor Domingos Jafelice questionou o ombudsman sobre o plural heterodoxo adotado pela Folha com relação aos sem-terra e aos sem-teto. Dei-lhe uma resposta provisória, por falta de tempo para uma pesquisa mais séria. Disse que me parecia soar melhor (eufonia) e que, não encontrando os termos no "Aurélio", optava pela forma não-flexionada ("sem-terra" e não "sem-terras") por analogia com "sem-trabalho", o único correlato que encontrara no dicionário mais usado no Brasil.
Jafelice replicou em 15 de janeiro. Ele também recorria à autoridade de mestres (Cândido de Figueiredo, Celso Cunha e Lindley Cintra), mas igualmente por analogia. Aparentemente, não encontrou explicação específica para essas locuções adjetivas incomuns.
Pedi então socorro ao professor de português Pasquale Cipro Neto, por intermédio da Secretaria de Redação. Ele confirmou que a forma não-flexionada é a correta.
Segundo a resposta encaminhada pela secretária-interina de Redação Renata Lo Prete, trata-se de expressões compostas de três termos em que os intermediários são preposições. Só o primeiro termo é flexionado (copo de plástico, copos de plástico; mula-sem-cabeça, mulas-sem-cabeça).
"Em 'sem-teto' e 'sem-terra', o primeiro termo (homens, mulheres, famílias, pessoas etc.) está subentendido na maioria das vezes em que é usada a expressão e, portanto, 'não aparece'. Quando aparecer, deve ser flexionado" (as famílias sem-terra, as mulheres sem-teto), conclui a Secretaria de Redação.

Já o leitor Cristiano Monteiro Martinez ligou para protestar contra o uso de um termo chulo na permissiva seção Saia Justa, publicada aos domingos no terceiro caderno da Folha. Não por ser chulo, mas pelo erro xucro de trocar "x" por "ch".
A palavra era "broxa", mas saiu "brocha". O significado da primeira grafia todos conhecem, ainda que os homens prefiram mudar de assunto. O que poucos sabem é que "brocha" existe também, com o "ch" mas sentido diverso: "Prego curto, de cabeça larga e chata", segundo o "Aurélio".
Quem diria...

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