São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 1996
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Os mitos sobre o desemprego

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

A redução do problema do desemprego a um mero indicador quantitativo -os quase 5% de "desocupados" calculados pelo IBGE, que não incluem sequer os milhões de subocupados por "conta própria" (do tipo flanelinha e camelô, até universitários)- faz parte da visão simplista e propagandística dos defensores neoliberais do "ajuste estrutural" do mercado de trabalho. Esta visão fundamenta-se em vários mitos, dos quais destacamos os principais.
Mito nº 1 - O desemprego é um fenômeno mundial, associado à globalização, do qual o país, para modernizar-se, não pode escapar.
Falso. A globalização é um processo que vem se desenvolvendo há várias décadas -via transnacionalização da produção e do comércio internacional-, assumindo dimensões mais amplas com a desregulamentação financeira deflagrada pelos Estados Unidos na primeira metade dos anos 80.
No bojo deste processo, diversos países se modernizaram e consolidaram sua inserção no mercado global, apresentando um notável crescimento da economia e mantendo elevados níveis de emprego, como foi o caso do Japão, de Formosa e da Coréia, para mencionar apenas os exemplos mais notórios.
É verdade que a situação do emprego tendeu a deteriorar-se progressivamente em vários países da Europa a partir do início dos anos 70 (como na Espanha, Reino Unido, França, RFA, Itália e Dinamarca), em função dos ajustes recessivos associados ao choque de preços do petróleo e desdobramentos ulteriores das políticas conservadoras de viés deflacionista.
Apesar disso, vários países resistiram até 1990, com índices baixos de desemprego, entre 2% e 3%, como se verificou, por exemplo, na generalidade dos países da Aelc (Áustria, Finlândia, Noruega, Suécia e Suíça).
Nos Estados Unidos e no Japão, cujas empresas são as mais globalizadas do mundo, os níveis de desemprego se estabilizaram, desde 1960, em torno de 6% e 2%, respectivamente. Portanto, mais que decorrência inevitável da globalização, o desemprego tem que ver com o posicionamento do país frente a este processo e com as políticas que adote para correspondente reestruturação produtiva.
É evidente que numa inserção internacional subordinada, dentro de um modelo de endividamento externo e de ajustes recessivos permanentes, quando a reestruturação industrial fica entregue ao espontaneísmo do mercado e às supostas necessidades das empresas individuais e do Estado de "cortar gorduras", a situação do emprego tende a complicar-se.
A propósito, não ocorreria a uma sociedade civilizada usar a denominação "cortar gorduras" para lançar no desemprego milhões de trabalhadores.
Mito nº 2 - O desemprego é consequência do processo de modernização tecnológica em curso no país, através do qual as empresas se adequam às novas condições de concorrência determinadas pela abertura da economia.
Falso. É óbvio que a introdução de novos equipamentos e métodos de produção tende a reduzir o coeficiente de emprego por unidade de produto, cuja contrapartida é o aumento da produtividade do trabalho, a qual, se apoiada num vigoroso processo de investimento líquido, sustentaria tanto o crescimento quanto a elevação da competitividade da produção nacional.
O argumento do desemprego tecnológico, no entanto, passa por alto, além disso, três aspectos essenciais para uma adequada abordagem do problema.
Primeiro, parte importante deste processo de atualização tecnológica consumou-se na maioria dos ramos industriais, com exceção dos segmentos automotivos e eletrônicos, antes do aprofundamento, a partir de 1993, do processo de abertura da economia.
Segundo, a modernização tecnológica não é incompatível com a manutenção do emprego, como aliás o demonstram várias experiências internacionais -observe-se por exemplo os casos, bastante diferenciados em termos das estratégias adotadas, dos Estados Unidos, do Japão e da Suécia. Assim, deve-se à compressão da capacidade de investimentos do Estado e das empresas, imposta pelas políticas neoliberais, mais que ao progresso tecnológico em si, um dos principais redutores do potencial de geração de emprego.
Terceiro, a abertura abrupta e desordenada da economia, paralela à implementação de uma política de sobrevalorização cambial, aperto creditício e elevação brutal das taxas de juros, gerou um processo de substituição de produção nacional por produção importada -somente em 1995 as importações aumentaram 50%-, desestruturando amplos segmentos do sistema produtivo nacional.
Os efeitos deste processo sobre o emprego são muito mais relevantes que o impacto da modernização tecnológica, até porque ele afetou com mais intensidade setores produtivos e segmentos empresariais com importante participação na geração de empregos.
Mito nº 3 - Os elevados custos da mão-de-obra no Brasil e a excessiva regulamentação das relações de trabalho reduzem a competitividade da produção nacional; sua diminuição estimularia os investimentos e o emprego.
Falso. O custo por hora trabalhada no Brasil é um dos mais baixos do mundo -US$ 2,5 incluindo os pagamentos indiretos e encargos tributários, enquanto na Coréia alcança quase US$ 5,0, na Itália é superior a US$ 19,0 e nos Estados Unidos e no Japão situa-se em torno a US$ 16,0.
Note-se que são todos países competitivos com graus distintos de "rigidez" de mercado de trabalho e diversas taxas de "poupança interna". Mas estes dados da realidade não são levados em conta por alguns "novos economistas", sociólogos e propagandistas que investem sobre os direitos trabalhistas e sociais, escudados nos malabarismos implícitos no chamado "custo Brasil". A falsificação dos dados chega ao extremo de incluir como encargos sociais até o repouso semanal e outros itens de natureza similar, já incorporados ao salário contratual há muitas décadas no Brasil e no mundo.
Aos desavisados de boa fé, convém recordar que, para um salário referencial de R$ 100, os demais rendimentos monetários indiretos recebidos pelo empregado, incluindo o FGTS, somariam R$ 25,10, enquanto o que se poderia denominar efetivamente de contribuições sociais (INSS, seguro-acidente, salário-educação etc.) não passaria de R$ 30,89. Além disso, o mercado de trabalho no Brasil já é extremamente "flexível". O grau de informalidade do emprego atinge mais de 1/3 da mão-de-obra empregada. Os baixos salários, a forte dispersão da escala de remunerações e a elevada taxa de rotatividade da mão-de-obra são um escândalo mundial.
Portanto, sem prejuízo do aperfeiçoamento das normas que regulam as relações capital/trabalho, é evidente que as propostas de "flexibilização" atualmente em discussão só serviriam aos propósitos de aumentar ainda mais a exploração da força de trabalho empregada, eliminar conquistas sociais dos trabalhadores e, sobretudo, debilitar a capacidade de negociação de suas organizações sindicais.
O tema do desemprego é demasiadamente sério para ser tratado de forma superficial e dogmática, com receitas pré-fabricadas de duvidosa eficácia. O que o país realmente necessita é de uma política de investimento, financiamento e organização social inseridas numa proposta de desenvolvimento global que possibilite enfrentar os gigantescos problemas de exclusão social, agravados dramaticamente pelo atual modelo econômico, cuja permanência põe em risco nossa própria sobrevivência como nação.

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