São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A informação e o saber

CELSO LAFER

O hiato entre a atividade intelectual e a mídia precisa ser superado
Continuação da pág. 5-9

Esta mediação é complexa, pois, fazendo uso de metáforas, pode-se dizer que a mídia gera um fluxo constante de palavras e, crescentemente, de imagens, que apresenta a dupla característica do conjunto uniforme, ou melhor, informe -provocando a sensação de indistinção, de caos-, e de soma de fragmentos -os acontecimentos. O intelectual, em sua prática da reflexão, entende que é de sua responsabilidade dar -seja para influenciar, legitimar ou criticar o poder no espaço da opinião pública- uma organização a esse fluxo, propondo e atribuindo um significado ao que parece muitas vezes incompreensível e espasmódico.
Há intelectuais que foram e são bem sucedidos nesta tarefa no âmbito da mídia, na medida em que conseguem associar o saber na limpidez do informar. Penso, por exemplo, no papel que há muitos anos tem na Itália os frequentes artigos de Norberto Bobbio em "La Stampa". Penso, também, no que foi na França a atuação de Raymond Aron -ao mesmo tempo grande intelectual e grande editorialista-, que durante décadas contribuiu semanalmente para pautar, através da imprensa, a discussão pela opinião pública dos grandes temas e assuntos da política interna francesa e da política internacional. Mencionaria, igualmente, no mundo hispânico, Ortega y Gasset, que durante a sua vida fez do jornal o instrumento de seu magistério, seguindo escrupulosamente o seu próprio preceito: a clareza é a cortesia do filósofo.
A praça e o palácio
Os exemplos acima mencionados são ilustrativos do papel positivo da mediação entre a cultura do saber e a do informar. Esta mediação é da maior importância para a vida democrática pois, para falar com Kant, o uso público da razão, por parte do intelectual que alcança abrangência através da mídia, contribui, pela qualidade de sua informação, não sufocado pela quantidade indiferenciada dos fragmentos, a organizar a agenda da opinião pública. O intelectual que consegue desempenhar este papel -o do observador participante- não exerce diretamente o poder numa sociedade, mas a influencia, agitando idéias, suscitando e organizando os dados de um problema ou de um conhecimento. Em síntese, num regime democrático, tem um impacto tanto na praça quanto no palácio.
As razões deste impacto na praça e no palácio residem num dado constitutivo da vida política. Com efeito, se os acontecimentos -o como as coisas efetivamente se passaram- influenciam a opinião pública com a gravitação de sua factualidade, a organização do conhecimento sobre estes fatos pode influenciar o desdobramento dos acontecimentos, dada a complementaridade entre os eventos e sua percepção.
No exame deste impacto, não estou cogitando, neste trabalho, de um tempo mais longo, que seria o âmbito da história das mentalidades e o da discussão do papel das idéias na cultura política de um país, que é algo próprio à ação social dos intelectuais. Estou, sim, querendo examinar a dinâmica do prazo mais curto, de estruturação de resposta aos acontecimentos.
Nesta resposta, como foi apontado, é difícil e complexa a relação do intelectual, enquanto simples "spectateur engagé" -como se autodenominava Aron- com a mídia. E é, aliás, para não torná-la mais complexa, mesclando o exercício do saber com o exercício direto do poder, que cabe lembrar que Kant, no "Projeto da Paz Perpétua", aponta que, se não é de se esperar que os reis filosofem, também não é de se desejar que os filósofos se tornem reis, posto que o exercício do poder corrompe o livre juízo da razão.
Como o exercício do poder nas sociedades contemporâneas requer o saber, no entanto, a verdade é que de uma forma ou de outra os intelectuais acabam não se circunscrevendo ao preceito kantiano. Como diz Bobbio, numa de suas concisas fórmulas, "né con loro, né senza di loro". Daí a conveniência analítica de se fazer algumas considerações sobre os intelectuais diretamente envolvidos na ação e a mídia.
O intelectual envolvido na ação político-diplomática sente com particular intensidade o desafio representado pelo contraste entre a cultura do saber e a do informar. Exemplifico com a minha própria experiência. Confirmei, em minha passagem pelo Itamaraty, o que antes afirmara como estudioso e observador participante, vale dizer que a diplomacia hoje não pode limitar-se ao clássico e discreto trabalho das chancelarias -ela requer a luz do espaço público. A idéia de diplomacia aberta responde à transição de uma política externa legitimada pelos supostos interesses nacionais interpretados privativamente por uma Razão de Estado a uma política externa que somente se legitima e consolida enquanto responde efetivamente aos anseios da cidadania. Esta passagem de uma diplomacia de soberanos-governantes para outra fundada na soberania dos governados significa acrescentar ao informar-se o informar, ao saber o divulgar.
Pode-se, a propósito, identificar na Primeira Guerra Mundial o momento em que surgiu com maior clareza a necessidade de mobilização da opinião pública, que aproximou diplomacia e propaganda, tendo em vista os enormes recursos exigidos para a condução da guerra moderna ou guerra total. O reverso da medalha também passa a ser relevante a partir do fim da Primeira Guerra: a idéia de que a diplomacia pública, a publicidade de acordos e tratados -como proposta nos célebres Quatorze Pontos do Presidente Wilson-, era elemento favorecedor da paz. Entre esses dois aspectos divergentes da participação ampliada nas discussões de política exterior se situa, talvez, a diferença entre demagogia e democracia, esta última correspondendo efetivamente ao que Kant esperava que a República trouxesse como contribuição no sentido da paz perpétua.
Diplomacia total
Desenvolvimento curioso deste crescente envolvimento da opinião pública nos assuntos diplomáticos, sobretudo aqueles relevando da guerra e da paz, foi o estabelecimento, pelo governo alemão, após o conflito de 1914-18, de uma "Schuldreferat" (Seção da Culpa pela Guerra) dentro do Ministério dos Negócios Estrangeiros, com a função de angariar argumentos e provas no sentido de que a Alemanha não havia sido a única responsável pela eclosão do conflito. Este esforço se baseava sobretudo no acesso e na publicação de documentos de arquivo, a maioria referente às relações teuto-russas no período pré-guerra, o que levou posteriormente a Inglaterra e depois a França a também abrirem seus arquivos aos historiadores, gerando o que Keith Hamilton e Richard Langhorne denominaram com propriedade uma diplomacia aberta competitiva e retrospectiva. Em suma, pode-se dizer, com estes autores, que assim como o século 20 viu o surgimento da guerra total, testemunhou igualmente o aparecimento da diplomacia total, tanto no que se refere a seus objetivos e à sua matéria, como em relação a seus meios, um dos quais é o acesso à opinião pública.
É preciso realçar que o informar não flui apenas do governo e do Estado para a sociedade, mas também em sentido oposto, numa dialética de mútua complementaridade. Minha experiência no Ministério das Relações Exteriores permitiu-me aquilatar a relevância deste processo, que denominei de a agenda da opinião pública. É o caso, no Brasil, de todos os novos e delicados problemas trazidos à diplomacia pela transformação do país de um tradicional pólo de imigração para as realidades da emigração.
Neste caso, pode-se dizer que a mídia, a partir de uma acumulação de fatos que se apresentavam de forma fragmentária (exercício profissional de dentistas brasileiros em Portugal; garimpeiros com atuação transfronteiriça ao Norte do Brasil; migrantes brasileiros no Paraguai -os chamados brasiguaios), foi capaz de sensibilizar a diplomacia e o governo para um fenômeno novo, que coloca desafios específicos e que envolve uma nova visão do papel da rede consular. Este papel positivo da imprensa radica talvez em que, ao contrário do intelectual que pensa por categorias, ou do diplomata que se vale de categorias sedimentadas em precedentes, ela se mostra mais atenta ao fato bruto. O intelectual muitas vezes tarda em perceber algo, porque os óculos de seu quadro conceitual não consideram relevante determinada informação.
A importância desta ação se verifica tanto no plano interno como no internacional. O controle, aliás, a ser exercido pelos cidadãos sobre a ação responsável dos governantes passa pelos meios de comunicação de massa -pela cultura do informar.
É nesse meio, ademais, que ocorre uma verdadeira batalha pela opinião pública nacional e internacional. O que significa esta batalha pela opinião pública? A opinião pública, numa sociedade democrática, não toma decisões de política interna, nem de política externa. Em síntese, não atua diretamente sobre a marcha dos acontecimentos, pois não tem o poder de iniciativa, mas tem o poder de tornar possível ou impossível uma política. É precisamente este condicionamento das políticas pela opinião pública que torna essa luta um tema crítico para o exercício do poder numa democracia.
Nessa luta, a cultura do saber responsável, quando bem sucedida na sua tradução para a cultura do informar, tem um papel importante, seja no sentido de esclarecer a direção das políticas públicas e dos valores que a embasam, seja para sustentar a relação técnica entre fins propostos e meios aptos para viabilizá-los. Um dos grandes desafios de governabilidade no mundo contemporâneo reside precisamente nesta associação entre saber e poder, ou seja, na capacidade de enfrentar os problemas de uma sociedade, contribuindo para criar uma vontade política, apoiada na racionalidade da explicação e legitimada por um chamamento à opinião pública que, no âmbito de instituições democráticas, leve em conta a dignidade da cidadania. Para isso, é preciso superar o hiato que frequentemente se verifica entre a lógica da globalização da atividade intelectual e a lógica da fragmentação que assinala, no tempo real dos fluxos, o papel da mídia.
Função hierárquica
Em síntese, e para arrematar, explicitando os termos de referência deste texto, no contexto de um colóquio voltado para os riscos de degeneração da democracia:
1. uma das condições de governabilidade no mundo contemporâneo é a capacidade de o sistema político processar, simultaneamente, a cultura do saber e a do informar, sob pena de ficar à deriva, sem condição de exercer a função hierárquica de coordenação da gestão da sociedade;
2. a boa governança ("good governance") como um indispensável ingrediente ético de governabilidade democrática transita, no dia-a-dia da relação governantes-governados, por um apropriado esclarecimento da opinião pública;
3. este apropriado esclarecimento requer uma mediação entre a cultura do informar, tal como hoje a opera a mídia, e o pluralismo da cultura do saber, tal como a desenvolvem os intelectuais;
4. as dificuldades desta mediação residem na lógica da fragmentação que permeia a cultura do informar da mídia e na consequente dificuldade que tem de incorporar, na avaliação dos eventos, a lógica da globalização da cultura do saber; e
5. o hiato entre o informar centrífugo e o saber centrípeto compromete o esclarecimento da opinião pública e é um dos riscos de degeneração da democracia no mundo contemporâneo, posto que paralisa a atuação consistente e consciente de uma cidadania ativa.

Texto Anterior: A informação e o saber
Próximo Texto: DERRIDA; VINHO; ENSAIO; CERVANTES
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.