São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 1996
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A informação e o saber

Celso Lafer analisa a relação intelectuais-mídia

CELSO LAFER
ESPECIAL PARA A FOLHA

O diálogo entre os intelectuais e a mídia é um aspecto importante e instigante da democracia contemporânea, que tem como um dos seus pressupostos a liberdade de informação e de opinião. A complementaridade destas duas liberdades explica por que a mídia, mesmo privilegiando a urgência sempre renovada da notícia, reserva à reflexão um espaço significativo. Disso são provas as páginas de opinião e os suplementos culturais, presentes em todos os grandes jornais, ou o realce concedido na TV às grandes entrevistas.
Na expectativa de que poderá oferecer princípios diretivos úteis para a orientação da sociedade ou na esperança de que seu saber técnico permitirá esclarecer a complexidade dos assuntos em jogo, o intelectual é crescentemente chamado pela mídia a opinar sobre a atualidade, seja política e econômica, seja sobre os mais variados assuntos que incidem na vida cotidiana. O cientista político, o economista, o sociólogo, o psicanalista, o escritor, o romancista, o poeta, o cineasta ou o teatrólogo são assim frequentemente instados, em um espaço e um tempo quase sempre exíguos, a explicar ou a interpretar temas tão vários como a crise do Estado, a estabilidade monetária, a violência urbana, a poluição ambiental, o aborto, a corrupção.
Chamado a opinar, o intelectual se sente tolhido pelas exigências de concisão e de fácil compreensão, que impedem elaborações mais complexas e requerem uma mudança de linguagem. Esta mudança, se é difícil em matéria de imprensa escrita, torna-se mais complexa na linguagem televisiva, dada a natureza da imagem; e distinta, no rádio, onde o tempo é mais longo e a palavra falada tem outras características. Manifestando-se, apesar de consciente daquelas limitações, o intelectual vê muitas vezes sua participação banalizada ou tornada incompreensível, porque forçada a ser demasiado elíptica e simplificadora.
Em ambos os casos, o intelectual normalmente tende a achar que a quantidade destas solicitações e a forma de sua divulgação sufocam a qualidade da informação que se busca prestar para atender aos objetivos democráticos de esclarecer a opinião pública. Esta tarefa de esclarecimento da opinião pública tem como pressuposto, como se sabe, a noção igualitária de que todo cidadão, desde que seja apropriadamente informado, pode julgar e decidir sobre aquilo que interessa à "res publica".
Saber e informar
Essas experiências revelam, para o intelectual, uma tensão dialética entre sua atividade, voltada para aquisição e conservação do conhecimento, e outra, de igual relevância social, que é aquela dedicada à divulgação do conhecimento. As duas atividades correspondem a duas culturas, a do saber e a do informar.
Cabe enfatizar que o contraste aqui feito entre as duas culturas constitui uma dicotomia não excludente. Tem como objetivo descrever a realidade e os seus problemas e não prescrever uma separação. É evidente que do ponto de vista axiológico -e ideal- o desejável seria uma cultura do informar lastreada no saber e uma cultura do saber fundamentando uma cultura do informar. É justamente o hiato entre as duas e os problemas para a democracia que daí derivam que são o objeto deste texto.
A dicotomia apontada, de todo modo, tem uma de suas razões de ser nas diferentes concepções ou experiências do tempo de que elas partem, e no diverso tratamento dos fatos que caracterizam seus respectivos ofícios.
Diria, para introduzir o tema, valendo-me das categorias de Hannah Arendt, que o tempo da cultura do informar, tal como praticado pela mídia, tem mais a característica do incessante e diário metabolismo do "labor" e o tempo da cultura do saber almeja a durabilidade do "work". Em síntese, o tempo da mídia aproxima-se da necessidade de produzir e oferecer para o consumo uma informação indispensável para a continuidade de alimentação da vida do jornal, da TV, etc. Já o tempo de atividade intelectual não é o do ciclo vital da espécie. Almeja a durabilidade da obra e de seu uso por um período mais prolongado.
Com efeito, o cientista social ou pensador, ao estudar as coisas humanas, se situa na duração mais longa. Busca entender processos que muitas vezes se desenrolaram por décadas ou séculos e foram invisíveis a olho nu, no instante mesmo em que algumas de suas fraturas decisivas se deram. Exemplos clássicos seriam o diário de Luís 16, que nada registrou no dia da queda da Bastilha; e os trabalhos da Câmara de Deputados, no Rio de Janeiro, em 3 de outubro de 1930, data do início da Revolução de 30, que não puderam realizar-se pelo prosaico motivo de falta de quorum e em nada aludiram ao processo histórico que então se iniciava.
O intelectual também se caracteriza pela sua maneira particular de lidar com os fatos. O fato para ele nunca é algo isolado, significativo por si só. Cada fato é insertado seja na série histórica dos que o antecedem e sucedem, seja na série sincrônica que, com ele, configura uma estrutura ou um sistema mais amplo. É o caso, examinado por Fernand Braudel, da mudança temporária efetuada por Felipe 2º da capital de Madri para Lisboa, por ele vista como sinal da passagem do centro econômico do Mediterrâneo para o Atlântico. A informação sobre essa decisão poderia ter um tratamento adequado numa cobertura contemporânea da mídia -por exemplo, ao enfatizar a sua importância para a consolidação do domínio espanhol em Portugal-, mas dificilmente poderia ela antecipar os efeitos de longo prazo e o significado último da mudança.
Não é preciso realçar que a imprensa, escrita ou audiovisual, obedece, por sua própria natureza, a parâmetros diversos daqueles que regem a academia. Interpelada pelo acontecimento e acossada pela concorrência, ela faz da velocidade sua forma de vida. Passamos já dos tempos da edição-extra, que buscava recuperar o atraso frente aos fatos que se sucediam sem cessar, para chegar à televisão de notícias por cabo -de que foi pioneira a rede CNN-, que não espera as horas canônicas dos noticiários para nos informar, e à Internet. Vivemos, hoje, o mundo em tempo real. A cobertura de guerras e revoluções é tão bem preparada e tão completa como a da Copa do Mundo ou a das Olimpíadas.
Por todos esses motivos, o fato é, em primeira instância, o senhor da atenção. Esta é a razão simultaneamente do poder e da impotência da imprensa.
Quanto ao primeiro, ao contrário do dito famoso na política de Minas Gerais -"o que importa não é o fato, é a versão"-, a força da imprensa provém de que o fato desmente qualquer versão. É o que ilustra uma observação, contida num ensaio de Hannah Arendt sobre verdade e política, a propósito de uma conversa entre Clemenceau e um diplomata da República de Weimar. Com efeito, quando este último perguntou ao estadista francês o que os historiadores do futuro diriam sobre a questão da responsabilidade pela eclosão da Primeira Guerra Mundial, Clemenceau replicou que não sabia, porém tinha certeza de que jamais diriam que a Bélgica invadiu a Alemanha.
Neste mesmo ensaio, aponta Hannah Arendt que a verdade primeira da política é a verdade factual. A verdade factual, no entanto, não é nem evidente nem necessária, e o que lhe atribui a natureza de verdade efetiva é que os fatos ocorreram de determinada maneira e não de outra. Trata-se, portanto, de uma verdade que depende de testemunho e existe apenas quando dela se fala. Em síntese, trata-se de uma verdade frágil, que precisa ser preservada dos riscos da "image-making" e das ameaças do poder que pode incidir na tentação de "manipulá-la para fora do mundo não apenas por um tempo, mas, potencialmente, para sempre".
É por esta razão que a proteção da verdade factual requer instituições que se situam fora do espaço político e que tenham aptidão para preservá-la. Entre elas, uma universidade autônoma e uma imprensa livre, nas quais podem atuar o historiador imparcial, o investigador sério, a testemunha e o jornalista de boa fé. Os adjetivos utilizados -imparcial, sério, de boa fé- denotam o tema da responsabilidade inerente ao exercício da liberdade.
A presença da verdade factual requer portanto a tutela jurídica da liberdade de opinião e da liberdade de informação, em instituições próprias, dotadas de autonomia em relação ao espaço político. É o jogo destas duas instâncias o que explica a importância, em regimes democráticos, da relação entre os intelectuais e a mídia.
O império do factual
Como disse acima, o império do factual constitui ao mesmo tempo o poder e a impotência da imprensa. A imprensa haure sua vitalidade da capacidade de produzir evidências. Por outro lado, o apego a um certo tipo de manifestação ou apresentação do fato ameaça a imprensa. É quando ele é visto sobretudo em sua individualidade e, na maioria das vezes, em sua singularidade. Poderíamos mesmo dizer, de forma simplificada, que, se o intelectual busca regularidades, o jornalista quase sempre busca exceções. Esta tendência a valorizar o excepcional -através da grande manchete ou do lide que capte a atenção- pode, numa ponta, cair na trivialidade inconsequente do pitoresco e, noutra, na crítica constante ou na caricatura mais ou menos feroz, na medida em que, como se diz correntemente, "good news is no news".
Releva precisar que essa valorização do excepcional pode ter como objetivo criar o evento político, mas pode também visar o entretenimento do público -o "fait divers".
A verdade factual tem, portanto, simultaneamente, um potencial desmistificador e um potencial de mistificação.
A partir deste mundo plasmado pela mídia, a política interna e a internacional operam hoje no plano real dos fluxos, tornando difícil a pausa e o recolhimento do parar para pensar inerentes à vida intelectual. Para usar metaforicamente os conceitos de globalização e fragmentação, os intelectuais se regem pela lógica da globalização dos processos, enquanto o espaço político tal como captado pela mídia é permeado pela lógica da fragmentação dos eventos.
O operar no tempo real dos fluxos e das imagens é um dado do espaço político nos regimes democráticos contemporâneos. Dado inarredável -pois não há evento sem a sua divulgação, e esta por sua vez prescinde da elaboração mais cuidadosa inerente ao ritmo do pensar. O evento surge, portanto, na agenda da opinião pública de maneira descontínua, fragmentária, boiando sem rumo claro no fluxo de informações. A fragmentação dos eventos no espaço político, tal como captado pelos fluxos e pelas imagens, nem sempre auxilia a explicitação do sentido, direção e duração da ação governamental e dos rumos da sociedade.
Esta avaliação mais global não exclui, como indiquei antes, que muitas vezes a mídia tenha um papel ordenador e construtor do evento ou eventos importantes para uma cidadania democrática. Dois exemplos históricos seriam: o caso Dreyfus e Watergate. Pode-se ver aí em ação uma vontade política de dar sentido aos fatos, que a imprensa pode assumir nos grandes momentos históricos, mas nem sempre no cotidiano mais ou menos anódino. O jornalismo investigativo e de denúncia pode, portanto, constituir o evento. Não é possível, entretanto, constituir o evento (um evento matriz como Watergate) todos os dias. Esta parece ser muitas vezes a tentação da imprensa, que assim corre o risco da banalização do acontecimento.
Com esta afirmação não estou desconsiderando o papel fundamental que teve a imprensa para a afirmação da democracia em momentos-chave da vida brasileira, exemplificada no contexto do processo de contestação do regime autoritário, quando seguiu de perto a questão das liberdades democráticas e dos direitos humanos, recolocando-a no centro do debate político. Aí demonstrou a mídia sua capacidade de transcender o evento, ao identificar e participar em processos de prazo mais longo.
A questão da divulgação do evento, enquanto contrastante com a sua constituição, coloca ainda o problema da seletividade, que permite um paralelo com a experiência político-diplomática, onde um dos temas críticos é o da seletividade da agenda. Cabe apontar, contudo, que a seletividade neste último plano é de segundo grau, uma escolha que implica prioridades e ordenamentos, não exclusões definitivas.
O risco da seletividade da mídia está em que ela implica, por ser de primeiro grau, por lidar com a matéria-prima mesma da informação que é o fato, um risco de eliminação e ocultamento. Para confirmar-se esta avaliação basta aludir à questão da censura e dar-se conta como, sob o seu domínio, há fatos que simplesmente desaparecem ou nem aparecem na discussão pública, porque sua menção está proibida. Esta prestidigitação que faz desaparecer fatos tem, como se sabe, o efeito paradoxal de fazer aparecer fatos que não existem -daí a frequência com que, em regimes autoritários, circulam rumores e teorias sem nenhuma base factual, mas dotados de certo poder de persuasão. Este fenômeno radica em que os regimes fechados não permitem que os fatos separem o rumor ou a versão da realidade.
Perante este quadro coloca-se uma questão-chave no Brasil e no mundo: como o poder político pode, num regime democrático que se fundamenta na transparência, na idéia de que o que é do interesse de todos deve ser do apropriado conhecimento de toda a cidadania, esclarecer à opinião pública o sentido de direção de um governo e de uma sociedade. Em outras palavras, como incluir na agenda da opinião pública a lógica da globalização?
Fragmentação
Na sua análise recente sobre os intelectuais e o poder nas sociedades contemporâneas, Bobbio observa que o poder ideológico, que é o que se exerce sobre as mentes, através da produção e transmissão de idéias, nas democracias modernas e pluralistas, tornou-se independente do poder político-militar e do poder econômico. Neste processo, deixou inequivocamente de ser monolítico e passou a ser fragmentado.
Esta fragmentação é inerente à idéia de democracia como um regime de convivência humana que se baseia no pressuposto de que a verdade não é una, mas múltipla. Esta multiplicidade faz com que a ação política requeira a contribuição tanto de intelectuais que forneçam princípios-diretivos como daqueles que proporcionem conhecimentos-meio. Na difusão e afirmação de valores e na elaboração de opções técnicas que permitam viabilizá-los, os intelectuais podem influenciar o poder (por exemplo: o "brain trust" de Roosevelt), legitimá-lo (os "idéologues" de Napoleão) ou criticá-lo (os dissidentes na antiga URSS). Podem também, o que é bem mais raro, exercê-lo diretamente. Em todos os casos, como o meio do poder ideológico é a palavra, a abrangência democrática desta palavra transita pela sua difusão através da mídia. Do ponto de vista da construção democrática do espaço da opinião pública, que é objeto deste trabalho, isto significa uma complexa mediação entre a cultura do saber e a do informar.

Continua à pág. 5-10

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