São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 1996
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A história prolixa

RICARDO MUSSE
ESPECIAL PARA A FOLHA

O objetivo de François Furet, explicitado no prefácio de "O Passado de uma Ilusão", era escrever uma história da "ilusão do comunismo". Com a proximidade do ano 2000, no entanto, também ele não resistiu à tentação de escrever uma história política do século 20, tendo como fio a comparação entre dois termos sempre discrepantes: a história do comunismo (o que acontecia na URSS) e as oscilações da idéia (ou da ideologia) comunista.
O fracasso de seu projeto se deve menos à escolha do fio condutor -que se revela bastante pertinente- do que à sua excessiva prolixidade. Ao fim de 560 páginas ele consegue atingir apenas (partindo também como Hobsbawn de 1914) o governo de Khruschov (1954-64), tendo de se contentar, para o período restante, a traçar rápidas pinceladas. E mesmo assim deixando de lado o âmbito mundial e se concentrando apenas na história da Europa continental.
Não é só a integralidade cronológica ou territorial que não foi captada -a complexidade social, econômica, tecnológica, e mesmo política, do século também está ausente. Apesar de rebarbativo e caudaloso, o livro simplesmente reafirma a interpretação preponderante no senso comum destes anos 90: uma vez que a atual democracia européia é a norma, tudo o que se distingue dela é patológico. Mas não pense o leitor, enganado pelo trocadilho do título, que patologia aqui tenha um significado freudiano. Pelo contrário, para Furet, as patologias do século foram apenas acidentes, excrescências que finalmente cederam lugar à boa ordem.
Anticomunista raivoso, daqueles que não titubeiam em chamar François Mitterrand de neobolchevique (pág. 578), Furet não se contenta em contestar as teses da historiografia marxista, também rejeita tudo aquilo que cheire a influência marxista no que tange ao método. Para tanto, ressuscita um gênero há muito desaparecido entre os historiadores profissionais: uma história política na qual o papel preponderante é desempenhado pelas individualidades e pelas idéias.
O breve século encerrado em 1989 com a queda do muro de Berlim, segundo Furet, só teve o seu cortejo de barbáries devido à contingência, isto é, à sua má fortuna: afinal, se Hitler não estivesse em Berlim em 1933, nem Lênin em Moscou em 1917, não teríamos nem comunismo nem nazismo!
Essa afirmação pueril não é um cochilo do autor, mas, antes, a síntese de suas conclusões. Pois Furet mantém-se coerente com suas premissas, sejam as ideológicas: vivemos no mesmo mundo, sob a égide do mesmo capitalismo, logo tudo o que não seja a democracia foi um equívoco; sejam as metodológicas: se não podemos explicar a história recorrendo à sociologia, à antropologia, à economia (o que seria filomarxismo) devemos explicá-la pela ação dos grandes homens e pela força das ideologias.
Recai-se assim num culturalismo há muito ultrapassado. E na França, em particular, abandonado na academia desde os "Annales". Nesse modelo, os homens, ou melhor, a massa é movida apenas pelas idéias e pela ação de uns poucos homens. Explicar o sentido dessa ação, numa chave geralmente biográfica (Lukács, por exemplo, sempre quis somente hostilizar o pai banqueiro), e as idéias que racionalizam esses atos ou que são geradas, enquanto interpretações desses acontecimentos, eis tudo o que importa.
Mas, se o recheio do livro são os perfis biográficos (quase sempre medíocres) e sua tessitura, a narrativa dos entrelaçamentos e dos resultados da ação das individualidades e das idéias, a sua ossatura se apóia em duas teses centrais. A primeira, responsável pelos melhores momentos do livro -em especial pelo capítulo sete, dedicado aos anos 1935-39, ou seja, à cobertura da política das "frentes populares" e da Guerra Civil Espanhola- consiste em mostrar as inevitáveis contradições da idéia stalinista de "socialismo num só país".
Acompanhando, passo a passo, a subordinação dos partidos comunistas aos objetivos de Moscou, Furet esclarece não só a estranha oscilação pela qual os partidos socialistas ora passam de inimigos a aliados principais, como também a inevitável antinomia entre uma postura nacionalista e a vocação internacionalista do comunismo.
A tese central do livro, porém, é a da identidade entre comunismo e fascismo (ou nazismo). Fiel ao seu método, Furet tenta prová-la pela comparação entre seus líderes (Lênin e Mussolini; Stálin e Hitler) e entre as suas doutrinas. Mas como contornar o fato fundamental de que tanto esses líderes quanto essas doutrinas travaram, desde o início, um combate mortal? Como aproximar a extrema-direita alemã do comunismo, se em 1933 o Partido Comunista Alemão foi a primeira vítima da ascensão de Hitler? Como aproximar Lênin de Mussolini se os seus programas eram antagônicos?
Na verdade, aqui, mais do que em qualquer outra parte, Furet ressente-se do auxílio das ciências sociais, por exemplo, da teoria weberiana da burocratização, o que poderia dar algum sentido a essa comparação. Na tentativa de nos convencer de que não se trata de uma tese tão absurda, só lhe resta resenhar, no final do livro, "As Origens do Totalitarismo", de Hannah Arendt -e remeter, assim, o leitor a uma obra mais consistente.
O irônico é que Furet repete dois pecados que não se cansa de apontar na ideologia comunista. Primeiro, o "culto da personalidade". Stálin, por exemplo, é tão glorificado em sua autonomia e onipotência, que sua pessoa chega a ser confundida com o próprio comunismo. Mais ainda, Furet tenta explicar o colapso do comunismo a partir das questões suscitadas pela morte e sucessão desse líder, isto é, a partir do processo de "desestalinização" iniciado por Nikita Khruschov e retomado por Mikhail Gorbatchov. Segundo, Furet tampouco abandona -à medida que segue as suas premissas ideológicas- a idéia de uma antecipação do sentido da história. Apenas inverte a direção: não mais o capitalismo, mas agora o comunismo é que constitui uma etapa encerrada na marcha da humanidade.
Talvez aí resida o interesse maior do livro. Pois, embora pouco nos ensine sobre as ideologias do passado, trata-se de um ótimo campo de observação da ideologia preponderante no presente.

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