São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 1996
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Ruínas de uma revolução frustrada

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

A história republicana é um livro com páginas fundamentais que ainda aguardam restauro. Domingos Meirelles, com "As Noites das Grandes Fogueiras", traz sua contribuição.
Seu texto é denso e compassado como o de um grande ficcionista. O longo relato (152 páginas) sobre os 23 dias em que São Paulo permaneceu em mãos dos tenentes rebelados, em julho de 1924, traz o tempero de informações obtidas junto a fontes primárias inéditas.
Há por exemplo a consulta aos 107 volumes do IPM (Inquérito Policial Militar) instaurado na época pelo governo para apontar os 569 cabeças da revolução. Ou ainda despachos de arquivos diplomáticos que revelam a indignação do corpo consular para com os bombardeios ordenados pelo presidente Artur Bernardes e os mais de 500 cadáveres de civis que a decisão truculenta deixou.
Os revolucionários batem em retirada, juntam-se a tropas do Sul e se lançam por uma longa marcha, que percorreria 36 mil quilômetros em 12 estados e que terminaria apenas em fevereiro de 1927, com o exílio na Bolívia.
"As Noites das Grandes Fogueiras" não entra no mérito do tenentismo e de suas notórias ambiguidades -eles, os tenentes, que se tornaram partidários de um modelo autoritário de modernização depois da Revolução de 30.
No livro, Isidoro Dias Lopes, Juarez Távora, Siqueira Campos, Miguel Costa ou Eduardo Gomes aparecem como coadjuvantes de um relato construído para centrar seu foco na figura de Luís Carlos Prestes (1898-1990).
Nada mais justo.
Mas como Domingos Meirelles possui uma relação explícita de carinho para com seu personagem, o trabalho corre constantemente o risco de reduzir o produto de uma invejável pesquisa histórica a um mero anaforismo de duas outras obras que também dão, à coluna, a dimensão mítica de uma epopéia. A saber: "A Coluna Prestes: Marchas e Combates" (1934), de Lourenço Moreira Lima, e "A Coluna Prestes" (1990), de Anita Leocadia Prestes.
É óbvio que nos anos 20 a República vivia os estertores de sua crise de legitimidade junto a setores importantes da oligarquia agrária que a sustentavam. Os historiadores costumam dizer isso com fatos e com números.
Meirelles, no entanto, sucumbe à tentação de percorrer um caminho mais fácil, ao retratar de forma caricatural figuras como Setembrino de Carvalho, Eduardo Artur Socrates ou Carneiro da Fontoura, oficiais do establishment bernardista. Cândido Rondon -que enfrentou a Coluna Prestes em Catanduvas, Paraná- passa incólume por esse banho de atributos negativos, porque já estava entrando por portas menos controvertidas na história do Brasil.
No campo oposto, nem sempre é bem-sucedido o implante dos fatos na imagem de heróis revolucionários. Afinal, o tenente João Cabanas praticava ou não a degola dos inimigos que caíam em suas mãos? Será que não se corre o risco de comprar gato por lebre ao endossar a versão do próprio Cabanas, de que, em Sorocaba e Botucatu, os legalistas gaúchos encheram três vagões de prostitutas na suposta orgia ambulante de perseguição aos rebeldes?
E, ainda, o livro reproduz a ordem do dia em que Miguel Costa qualifica Cabanas de "desertor", mas não aprofunda uma polêmica que, com certeza, esclareceria a dimensão autofágica no relacionamento entre as lideranças revolucionárias ou mesmo a inconsistência de oficiais ao mesmo tempo populares e politicamente xucros.
Meirelles descreve a técnica de preparo de churrascos a que os integrantes da coluna, tantas vezes famélicos, em certas ocasiões se entregam, como a 13 de maio de 1925. Mas, curiosamente, em momento algum ele se preocupa com a reação dos proprietários do gado expropriado como matéria-prima.
Seria uma das maneiras de retratar a reação dos civis que tinham suas regiões atravessadas pelos rebeldes. É normal supor que nem sempre a coluna fosse acolhida de braços abertos e que nem sempre se hostilizasse ou temesse as tropas legalistas que vinham ao seu encalço.
Um livro bem menos pretensioso, "O Avesso da Lenda" (1994), de Eliane Brum, se dá justamente ao trabalho de interrogar testemunhas da passagem dos revolucionários. Há uma sucessão de relatos de estupros e saques que por certo em nada compromete a retidão de Prestes ou a justeza de sua causa.
Meirelles e Brum se chocam ao darem cada um sua versão sobre o que ocorreu na noite de 24 de fevereiro de 1925, no vilarejo paranaense de Maria Preta. "As Noites das Grandes Fogueiras", a exemplo de Moreira Lima e Anita Leocadia Prestes, afirma que dois batalhões legalistas abriram fogo um contra o outro e que o engano custou às tropas do governo cerca de 200 baixas.
Testemunhas do mesmo episódio afirmam, em "O Avesso da Lenda", no entanto, que o engano foi cometido por dois grupos de rebeldes. A identidade dos soldados que permanecem sepultados no lugarejo daria razão a Brum.
É um detalhe. Mesmo assim, vale amplamente a pena se deliciar com as 765 páginas de um livro que -até mesmo pela ampla simpatia pela causa defendida por seus protagonistas- destila um extremo prazer pela leitura da história.

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