São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 1996
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O fim forçado das contradições

PAUL SINGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

O presidente Fernando Henrique Cardoso proferiu, quando na Índia, em 27/1/96, conferência sobre a globalização e suas consequências, que merece atenção. No que segue, pretendo resumir e comentar as principais teses e propostas de quem é ao mesmo tempo um significativo pensador político e o primeiro mandatário do país.
FHC começa por caracterizar a globalização da produção como sendo a divisão das etapas de produção entre diversos países, feita pelas grandes corporações. "Os países são selecionados para receber investimentos destas corporações com base no quadro geral das vantagens comparativas que oferecem." Vantagens para quem? Obviamente para quem os seleciona.
"Isso tem levado a uma acirrada competição entre países (...) por investimentos externos." Ora, todo mundo sabe que tipos de arcabouço institucional e quadro regulatório agradam os dirigentes das grandes corporações, de modo que não deve surpreender que eles estejam sendo uniformizados "em todos os países". Daí tira FHC consequências importantes. A necessidade de apresentar vantagens comparativas aos detentores do capital internacional explica que "as variáveis externas passaram a ter influência acrescida nas agendas domésticas, reduzindo o espaço disponível para as escolhas nacionais". O que seria particularmente o caso do tratamento do trabalho e da política macroeconômica.
É que estes aspectos são considerados decisivos pelos que importa influenciar. "O equilíbrio fiscal por exemplo tornou-se um novo dogma." Se este equilíbrio estiver perigando, ou assim parecer aos "mercados internacionais", estes "tomam decisões que poderão ter impacto real no país em questão". Foi exatamente o que ocorreu com o México, a Argentina e o Brasil, há um ano. A fuga dos capitais internacionalizados lançou os três países em recessão: caiu o consumo, a produção, o emprego, milhões ficaram mais pobres. É o que significa "redução do espaço para as escolhas nacionais". E FHC explicita: "A opinião pública internacional e, sobretudo, os mercados tendem a ser conservadores e a seguir uma certa ortodoxia em matéria econômica".
A globalização torna os governos nacionais crescentemente dependentes de tais "mercados" e mesmo que tenham sido eleitos para realizar uma política econômica não ortodoxa, não teriam condições objetivas de cumprir seus compromissos com o eleitorado. O que apresenta interessantes implicações (ou deveríamos dizer desafios?) para a democracia, que infelizmente o conferencista não explorou.
Mas franqueza não faltou ao presidente. Ele admite que "a ênfase da ação governamental (é) agora dirigida quase exclusivamente para tornar possível às economias nacionais desenvolverem e sustentarem condições estruturais de competitividade em escala global". O que seria menos grave se fosse possível demonstrar que a tal da competitividade coincide com os interesses e anseios da população de cada país. É o que FHC tenta em seguida, mas com êxito duvidoso.
Para chegar lá seria preciso privatizar empresas estatais, melhorar o funcionalismo e combater interesses velados dentro do aparato estatal. Mas, sobretudo priorizar educação e saúde, "para promover maior igualdade de oportunidades", o que "embora possa parecer paradoxal (...) de nenhuma forma conflita com idéias tradicionais de esquerda". O diabo é que conflita, sim, pois tradicionalmente a esquerda sempre achou que havia contradição frontal entre os interesses do capital (nacional e internacional) e da população trabalhadora e que promover igualdade requereria sobretudo redistribuição da propriedade (reforma agrária, por exemplo) e da renda (via salário mínimo, aposentadoria para os informais etc.). Conciliar a globalização, tal qual descrita por FHC, com os velhos ideais da esquerda exige mais do que afirmações enfáticas.
Em seguida, o presidente adverte que, embora o processo de globalização responda apenas às forças do mercado quanto à alocação de recursos e às decisões de investimento produtivo, os governos ainda têm um papel e "tentam influenciar a direção da globalização econômica", promovendo por exemplo blocos de integração regional. O exemplo é desanimador para a tese, pois é evidente que dentro de cada mercado comum os governos nacionais perdem autonomia e abrem mão de poderes a favor do novo conjunto.
É verdade que cada entidade econômica regional poderia impor restrições e condições ao capital privado internacionalizado, em melhores condições que países isolados. Mas esta idéia certamente não passa pela cabeça de FHC, que não vê a menor contradição entre o capital global e os povos ou as classes trabalhadoras de cada país. Como a exorcizar fantasmas, ele proclama: "Não há alternativa". Pouco mais adiante: "Queiramos ou não, a globalização econômica é uma nova ordem internacional". Refere-se em seguida a seus livros a respeito da dependência, quando supunha que "o processo internacional do capitalismo (...) não impedia o desenvolvimento, mas o tornava injusto e desequilibrado". Declara modestamente em seguida: "Esta visão mudou. Temos de admitir que a participação na economia global pode ser positiva, que o sistema internacional não é necessariamente hostil".
Esta última afirmação é condicional e cautelosa e por isso difícil de negar. Mas ela nem de longe justifica a mudança de visão, já que esta nunca fora dogmática. O diabo é que a própria conferência do presidente revela as consequências graves que a globalização traz consigo, para começar a subordinação real de cada governo nacional aos interesses e até aos preconceitos político-econômicos dos que manejam o capital global.
Depois de mostrar isso, a frase acima é no mínimo vaga em sua dupla negatividade -não é necessariamente hostil... Mas, alguns parágrafos mais abaixo, FHC atira a cautela fora e se deixa levar pelo entusiasmo: "O mundo pode ser dividido entre regiões ou países que participam do processo de globalização e usufruem seus frutos e aqueles que não participam. Os primeiros estão geralmente associados à idéia de progresso, riqueza, melhores condições de vida; os demais, à exclusão, marginalização, miséria". Portanto, fora da globalização não há salvação. Esta é a mensagem essencial.
Fernando Henrique se dá o direito de ser franco e crítico em relação à globalização, porque é indiscutível para ele a opção de participar dela. Mas basta refletir um pouco para perceber que participar ou ficar de fora não são as únicas opções. A globalização não começou com a eliminação dos controles dos Estados nacionais sobre o movimento dos capitais detidos pelos seus cidadãos. Ela vem prosseguindo desde a segunda metade do século passado e as multinacionais globalizaram boa parcela da produção mundial nos primeiros 25 anos do pós-guerra, enquanto os governos nacionais impunham regras a elas e por isso podiam se dedicar a outras prioridades e não "quase exclusivamente" à competitividade em escala global.
A globalização resultante da contra-revolução liberal do último quarto de século não precisa ser irreversível. Se houver vontade política por parte de alguns governos, a globalização poderá ser reorientada, deixando de estar submetida à hegemonia do capital privado. Sempre será possível reinstaurar algum controle intergovernamental do movimento internacional do capital financeiro e produtivo, seja pela ação de um agrupamento informal de economias nacionais poderosas, como o G-7, por exemplo, ou de algum organismo multilateral, como o FMI ou o Banco Mundial.
FHC aponta para os efeitos marginalizadores da globalização dentro dos países que dela participam e descarta o que considera soluções contraproducentes, tais como fechar a economia ao comércio externo ou estabelecer regras muito rígidas nas relações de trabalho. Formulando as alternativas deste jeito, a conclusão é lógica. Mas isso não impediu o próprio governo de FHC de elevar tarifas aduaneiras sobre determinadas mercadorias a 70% e de submeter as importações de algumas delas a quotas. O que constitui demonstração prática de que não é preciso escolher apenas entre participar da globalização nos termos que a ideologia do "mercado" impõe ou ficar de fora. E quanto a tornar as relações de trabalho mais rígidas, vale o mesmo: tudo depende de quanto, onde, como.
Fernando Henrique mostrou os efeitos políticos e sociais da globalização liberal e seu depoimento a este respeito é precioso. Mas, quanto a propostas alternativas, primou pelo conformismo. Atribuiu o ressurgimento do desemprego correlacionado à globalização apenas ao aumento da produtividade do trabalho; será que a transferência maciça da produção às regiões e países em que os trabalhadores não estão protegidos por sindicatos poderosos tem alguma coisa com isso? E, se tiver, não há nada que governos nacionais possam fazer? É mister que a esquerda e o movimento operário desenvolvam sua alternativa própria para a globalização, não para aboli-la mas para compatibilizá-la com os interesses das maiorias nacionais.

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