São Paulo, domingo, 11 de fevereiro de 1996
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UM SEGREDO DE 17 MIL VÁLVULAS

HELIO GUROVITZ
DA REDAÇÃO

O Eniac (Computador e Integrador Numérico Eletrônico) foi construído para resolver um problema bastante concreto: matar o inimigo numa guerra.
Para matar, era preciso atirar. E, para atirar, mirar. Cada arma precisava de uma tabela que relacionasse um ângulo de inclinação à distância do alvo e à munição.
Fazer os cálculos para essas tabelas era na época tarefa de uma equipe com calculadoras mecânicas. Uma máquina que fizesse as contas sozinha poderia determinar a vitória ou a derrota.
O Laboratório de Pesquisas Balísticas do Campo de Testes de Aberdeen, em Maryland (EUA), foi encarregado de providenciar as tabelas do modo mais eficaz.
Um dos projetos secretos era desenvolver uma máquina que fizesse as tabelas automaticamente.
Havia na época duas abordagens possíveis para fazer um computador: a analógica e a digital.
Máquinas analógicas são baseadas em dispositivos físicos que medem quantidades contínuas.
Um exemplo é a régua, que mede o comprimento -em milímetros. Mas a quantidade medida sempre guarda certa imprecisão -réguas comuns não são capazes de medir milésimos de milímetros.
Outro exemplo é o relógio de pulso de ponteiros, o chamado relógio analógico. Nele, os ponteiros giram continuamente indicando as horas. Mas eles não mostram décimos, nem milésimos de segundo.
Físicos criaram no século 19 vários dispositivos analógicos para fazer contas. Um exemplo clássico foi uma máquina elaborada por William Thomson (Lord Kelvin, 1824-1907) para prever as marés.
Ela tinha uma série de engrenagens, que giravam para fazer contas, e riscava sobre um papel um resultado aproximado, que depois era medido. Apesar da imprecisão, ela era veloz para a época.
Mas sempre houve quem tentasse fazer contas de outro modo -o digital. Uma das primeiras calculadoras mecânicas, do francês Blaise Pascal (1623-62), seguia esse princípio, já presente nos ábacos.
A essência da máquina digital é que quantidades são representadas por números e variam de forma descontínua, dando passos de um em um (como no relógio digital, no qual os segundos andam passo a passo, não continuamente).
A máquina de Pascal fazia operações de soma e subtração e funcionava, à base de engrenagens e peças mecânicas, aproximadamente como as contas são feitas à mão.
Há notícia de uma outra máquina de calcular, inventada por Wilhelm Schikhard (1592-1635), para auxiliar o astrônomo Johannes Kepler (1571-1638) a calcular tabelas de posições de astros.
Com o mesmo objetivo, o filósofo e matemático Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716) fez outra calculadora, capaz de somar, subtrair, multiplicar e dividir.
Na época, o cálculo das chamadas tabelas de "efemérides" (ou posições dos astros) era fundamental para a navegação, que impulsionava a expansão européia.
E foram essas mesmas tabelas que levaram o britânico Charles Babbage (1791-1871) a dedicar sua vida à construção de uma máquina de calcular digital.
Seu primeiro projeto ficou conhecido como "máquina de diferenças". Era um mecanismo digital sofisticadíssimo para gerar tabelas com os resultados de equações específicas.
Babbage não chegou a concluir sua máquina (testou-a apenas num caso particular), mas o escocês Pehr George Scheutz (1785-1873) fez uma "máquina de diferenças" com auxílio de Babbage e apresentou-a em Londres em 1854.
Nessa época, intrigado pelo funcionamento do tear mecânico de Joseph-Marie Jacquard (1752- 1834), Babbage já estava às voltas com mais uma idéia mirabolante: a "máquina analítica".
O que chamou a atenção de Babbage no tear de Jacquard foi o uso de cartões perfurados para estabelecer um padrão de tecido. Só as agulhas que passavam pelos furos teciam, criando um desenho.
Babbage pensou em usar o princípio dos cartões perfurados para "programar" uma máquina de fazer contas. Um conjunto de cartões corresponderia a uma fórmula.
A "máquina analítica" seria então um instrumento geral, que poderia ser programado dos mais diversos modos. Novamente, Babbage não chegou a concluí-la.
As máquinas de Babbage não tiveram o impacto que ele esperava, diante do surgimento de dispositivos analógicos como o de Kelvin, que eram bem mais rápidos.
Mas uma pessoa ficou fascinada pelas idéias de Babbage e deixou relatos dos planos para concluir a "máquina analítica": Augusta Ada Byron, filha do poeta Lord Byron, que depois se tornou condessa de Lovelace e baronesa Wentworth. Ela é considerada a primeira programadora da história.
Os relatos de Lady Lovelace sobre as máquinas de Babbage depois teriam impacto sobre os criadores das primeiras máquinas digitais no século 20.
Além da "máquina analítica" de Babbage, o tear de Jacquard também inspirou o americano Herman Hollerith (1860-1929) a fazer uma máquina com cartões perfurados para tabular dados do censo de 1890 nos Estados Unidos.
A máquina reduziu para um mês o tempo de processamento do censo, permitiu que novas perguntas fossem incluídas e deu a Hollerith a possibilidade de criar em 1896 a empresa Tabulating Machine Company, que originaria a IBM.
Nas primeiras décadas do século 20, a corrida por velocidade de cálculo gerou uma disputa entre as abordagens analógica -então a mais veloz- e digital.
No fim da década de 40, Howard Aiken, da Universidade Harvard, e Clair Lake, da IBM, começaram a montar uma máquina digital com dispositivos eletromecânicos chamados relés (espécie de chave mecânica que controla passagem de corrente elétrica).
Nos Laboratórios Telefônicos Bell, pesquisa semelhante era liderada por George Stiblitz.
O início da guerra viu também surgir dispositivos eletromecânicos na Alemanha, onde Konrad Zuse obteve em 1941 um computador digital eletromecânico.
Todos esses computadores ainda perdiam a corrida para máquinas como o chamado "analisador diferencial", um dispositivo analógico desenvolvido por Vannevar Bush para resolver certas equações, sob inspiração da máquina de Kelvin.
O analisador de Bush levava uns 15 minutos para calcular uma tabela. A máquina de Aiken e Lake (chamada Mark-1), duas horas. Um ser humano com calculadora mecânica, 12 horas.
Mas um professor de física da Universidade do Estado de Iowa, chamado John Vincent Atanasoff, teve a idéia de usar um dispositivo digital para resolver equações.
Montou um computador que ficou conhecido como ABC, que resolvia apenas problemas específicos, mas já funcionava com dispositivos eletrônicos chamados válvulas em vez dos relés.
John Mauchly, engenheiro da Escola Moore, da Universidade da Pensilvânia, familiarizado com as idéias de Atanasoff, propôs num memorando a construção de um computador geral e eletrônico.
Com seu aluno John Presper Eckert Jr., Mauchly foi o criador do Eniac que, para fazer as mesmas tabelas, levaria um tempo mil vezes menor que o melhor de seus congêneres eletromecânicos: cerca de 7 segundos.

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